Uma pausa para um cafezinho! Uma conversa à toa para desbanalizar o dia a dia... Um espaço e um momento solto no ar, preso no olhar inutilmente essencial.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Relações de Amizades no século das Fragilidades

Por Joe Cruz

Somos hoje mais de sete bilhões de pessoas dividindo os espaços habitáveis do planeta. Estamos em constante crescimento: a população da Terra provavelmente irá beirar os dez bilhões de habitantes em cinquenta anos. Do século 18 pra cá, a expectativa de vida passou de 27 para 65 anos. A Revolução Industrial, a partir do século 19, aproximou nações através de relações comerciais que logo se transformaram numa grande e complexa rede de relacionamentos multiculturais. A evolução tecnológica evidencia todos os dias que muitos limites de nossa espécie podem ser superados através do domínio da técnica. Aprendemos a voar cada vez mais alto, percorremos distancias cada vez maiores e em menos tempo, mergulhamos cada vez mais fundo, explorando mistérios nas profundezas dos mares e na escuridão silenciosa do espaço. Utilizamos recursos da natureza para tornar nossa estadia pelo planeta mais confortável e menos selvagem.

Grosso modo, é possível dizer que chegamos até aqui graças à capacidade de criar códigos e símbolos para interpretar o mundo e a partir disso elaborar uma forma primitiva de linguagem. Foi através dos grunhidos e gestos estranhos dos homens das cavernas, que tornou-se possível estabelecer alguma comunicação entre eles. Tal capacidade lhes conferiu, naquele período, grande vantagem na luta pela sobrevivência, pois puderam formar e organizar grupos. Em pequenos grupos, os homens tornaram-se caçadores mais eficientes e presas menos vulneráveis. Sem dúvida poder comunicar-se garantiu ao homem a evolução vindoura da espécie.

Inauguramos o século XXI experimentando o ápice das comunicações e suas possibilidades. E se já não é mais vital que nos agrupemos para caçar mamutes ou driblar predadores famintos, a necessidade de organizar grupos para nos afirmar num mundo que ameaça desabar sobre nossas cabeças, permanece ainda como um meio de tornar a vida mais fácil. Aqui, sobreviver não implica apenas em garantir mais tempo de vida de forma instintiva, mas sim em atribuir a ela valores, sentido e qualidade durante este tempo. É aqui onde, a meu ver, a amizade tem seu papel fundamental.


Mesmo com todas as evoluções que a humanidade foi capaz de realizar até agora, é impossível afirmar que nos sentimos mais “à vontade” com a existência. Também não é provável que nos sintamos melhor daqui a cinquenta ou cem anos. O mundo ainda é confuso, muitas vezes inóspito, incerto, imprevisível. As repostas que buscamos, mudam sempre com as novas perguntas trazidas por novas descobertas.
Num cenário assim, é fácil imaginar o quanto é primordial o encontro entre pessoas que são capazes de reinterpretar a vida e o mundo de acordo com uma percepção particular. Juntas, procuram encontrar o “lugar comum” em meio ao caos, reconfigurando assim o mundo num olhar especialmente ajustado às suas personalidades. Em outras palavras, o encontro amigo qualifica a e expande as possibilidades de compreender e adaptar o mundo à nossa maneira de enxerga-lo.
Sozinhos, talvez seja possível tal proeza, no entanto é através do outro que legitimamos nossas percepções objetivas.


A solidão, quando opcional, é necessária de tempos em tempos para que se possa restabelecer o contato íntimo com a própria existência através de um mergulho sincero no abismo da própria consciência. Aliás, aqui é bom que se diga: alguém que pretenda manter amizades fundamentando-as na fuga de si mesmo, não conseguirá nada além de experiências vãs e efêmeras, no máximo talvez, a ilusão de estar anestesiado contra o tédio. Ademais, nunca parece genuína e prazerosa a companhia de quem percebe-se o desespero da fuga seja lá do que for.
Dividir emoções, compartilhar momentos marcantes ou entregar-se à novas sensações por vontade própria, exige da relação entre as pessoas um mínimo de entrega e confiança que somente a sinceridade da relação é capaz de expressar.
O encontro amigo com essas características justifica a troca do “bom pelo bom”. Há então a negociação justa entre aquele que oferece uma porção verdadeira de si ao mesmo tempo em que recebe do outro uma medida semelhante à que proporcionou. O abraço, quando não praticado apenas como um gesto cultural, simboliza bem esta troca. Podemos pensar no abraço amigo também como ponto de apoio entre duas pessoas que, através da força contrária, as mantém firmes e em pé, capazes de suportar grandes pesos como arcos romanos.

Visto desta forma, um amigo é muito mais do que “coisa pra se guardar no lado esquerdo do peito” como canta Milton Nascimento na belíssima “Canção da América”. O que a amizade torna essencial, nem sempre é a presença física do outro, mas sim a consciência de uma cumplicidade quase criminosa na proteção e no cuidado daquele que é capaz de tornar a vida mais interessante e intensa. Almir Sater na letra da canção “Razões” se dispõe a enfrentar qualquer parada em nome daquele que reconhece ser quem sintoniza no mesmo ideal de vida: “Conte comigo meu amigo pra te dar a mão. E ser for pra correr perigo que seja boa razão... Para que agente realize então aquela velha, mas sincera ambição”. É claro que uma relação assim, só se faz possível através das provas impostas pelo tempo. A persistência pela companhia do outro, resulta em estórias que vão preenchendo páginas e páginas no livro da vida. É aí que, ao olhar para trás, é possível constatar o real valor da entrega. No entanto, é muito comum que o próprio tempo se encarregue de apresentar as mudanças que separam as pessoas, justamente porque a vida é movimento e nas idas e vindas, o olhar se altera para abrir novos caminhos. É por isso que na canção “A lista”, Oswaldo Montenegro nos desafia: “Faça uma lista de grandes amigos. Quem você mais via há dez anos atrás. Quem você ainda vê todo dia? Quantos você já não encontra mais?” Não é à toa que nos rendemos à beleza de amizades duradouras. Pois reconhecemos a raridade de laços que permanecem e se fortalecem por autorização do tempo. Ainda mais por conta da leviandade das relações virtuais nas redes sociais.

Nunca foi tão fácil encontrar e conhecer pessoas, e tão difícil apertar laços. Nunca foi tão fácil o acesso à vida de pessoas que mal conhecemos, e tão difícil conhecê-las de verdade. Nunca foi tão fácil expor o que se pensa, sente e acredita... Mas parece que nunca foi tão desinteressante e desnecessário. O interesse pelo outro neste contexto, não se instiga pela vontade de iniciar a amizade, mas sim pela necessidade de autoafirmação baseada na comparação e na presunção. Não por acaso, nos tornamos cada vez mais tediosos e depressivos. E não seria exagero dizer que muitos de nós, embora conviva diariamente a rotina de centenas de pessoas no Facebook, queira mesmo baixar a guarda para perder o folego dentro de um abraço amigo. 

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