Por Joe Cruz
Somos hoje mais de sete
bilhões de pessoas dividindo os espaços habitáveis do planeta. Estamos em
constante crescimento: a população da Terra provavelmente irá beirar os dez bilhões de habitantes em cinquenta
anos. Do século 18 pra cá, a expectativa de vida passou de 27 para 65 anos. A
Revolução Industrial, a partir do século 19, aproximou nações através de
relações comerciais que logo se transformaram numa grande e complexa rede de relacionamentos
multiculturais. A evolução tecnológica evidencia todos os dias que muitos
limites de nossa espécie podem ser superados através do domínio da técnica.
Aprendemos a voar cada vez mais alto, percorremos distancias cada vez maiores e
em menos tempo, mergulhamos cada vez mais fundo, explorando mistérios nas
profundezas dos mares e na escuridão silenciosa do espaço. Utilizamos recursos
da natureza para tornar nossa estadia pelo planeta mais confortável e menos
selvagem.
Grosso modo, é possível
dizer que chegamos até aqui graças à capacidade de criar códigos e símbolos
para interpretar o mundo e a partir disso elaborar uma forma primitiva de
linguagem. Foi através dos grunhidos e gestos estranhos dos homens das cavernas,
que tornou-se possível estabelecer alguma comunicação entre eles. Tal
capacidade lhes conferiu, naquele período, grande vantagem na luta pela
sobrevivência, pois puderam formar e organizar grupos. Em pequenos grupos, os
homens tornaram-se caçadores mais eficientes e presas menos vulneráveis. Sem
dúvida poder comunicar-se garantiu ao homem a evolução vindoura da espécie.
Inauguramos o século XXI
experimentando o ápice das comunicações e suas possibilidades. E se já não é
mais vital que nos agrupemos para caçar mamutes ou driblar predadores famintos,
a necessidade de organizar grupos para nos afirmar num mundo que ameaça desabar
sobre nossas cabeças, permanece ainda como um meio de tornar a vida mais fácil.
Aqui, sobreviver não implica apenas
em garantir mais tempo de vida de forma instintiva, mas sim em atribuir a ela
valores, sentido e qualidade durante este tempo. É aqui onde, a meu ver, a
amizade tem seu papel fundamental.
Mesmo com todas as
evoluções que a humanidade foi capaz de realizar até agora, é impossível
afirmar que nos sentimos mais “à vontade”
com a existência. Também não é provável que nos sintamos melhor daqui a
cinquenta ou cem anos. O mundo ainda é confuso, muitas vezes inóspito, incerto,
imprevisível. As repostas que buscamos, mudam sempre com as novas perguntas
trazidas por novas descobertas.
Num cenário assim, é fácil
imaginar o quanto é primordial o encontro entre pessoas que são capazes de
reinterpretar a vida e o mundo de acordo com uma percepção particular. Juntas, procuram
encontrar o “lugar comum” em meio ao
caos, reconfigurando assim o mundo num olhar especialmente ajustado às suas
personalidades. Em outras palavras, o encontro
amigo qualifica a e expande as
possibilidades de compreender e adaptar o mundo à nossa maneira de enxerga-lo.
Sozinhos, talvez seja
possível tal proeza, no entanto é através do outro que legitimamos nossas
percepções objetivas.
A solidão, quando
opcional, é necessária de tempos em tempos para que se possa restabelecer o
contato íntimo com a própria existência através de um mergulho sincero no
abismo da própria consciência. Aliás, aqui é bom que se diga: alguém que
pretenda manter amizades fundamentando-as na fuga de si mesmo, não conseguirá
nada além de experiências vãs e efêmeras, no máximo talvez, a ilusão de estar
anestesiado contra o tédio. Ademais, nunca parece genuína e prazerosa a
companhia de quem percebe-se o desespero da fuga seja lá do que for.
Dividir emoções,
compartilhar momentos marcantes ou entregar-se à novas sensações por vontade própria,
exige da relação entre as pessoas um mínimo de entrega e confiança que somente
a sinceridade da relação é capaz de expressar.
O encontro amigo com essas características justifica a troca do “bom pelo bom”. Há então a negociação
justa entre aquele que oferece uma porção verdadeira de si ao mesmo tempo em
que recebe do outro uma medida semelhante à que proporcionou. O abraço, quando
não praticado apenas como um gesto cultural, simboliza bem esta troca. Podemos
pensar no abraço amigo também como
ponto de apoio entre duas pessoas que, através da força contrária, as mantém
firmes e em pé, capazes de suportar grandes pesos como arcos romanos.
Visto desta forma, um
amigo é muito mais do que “coisa pra se
guardar no lado esquerdo do peito” como canta Milton Nascimento na
belíssima “Canção da América”. O que
a amizade torna essencial, nem sempre é a presença física do outro, mas sim a
consciência de uma cumplicidade quase criminosa na proteção e no cuidado
daquele que é capaz de tornar a vida mais interessante e intensa. Almir Sater
na letra da canção “Razões” se dispõe
a enfrentar qualquer parada em nome daquele que reconhece ser quem sintoniza no
mesmo ideal de vida: “Conte comigo meu
amigo pra te dar a mão. E ser for pra correr perigo que seja boa razão... Para
que agente realize então aquela velha, mas sincera ambição”. É claro que uma
relação assim, só se faz possível através das provas impostas pelo tempo. A persistência
pela companhia do outro, resulta em estórias que vão preenchendo páginas e
páginas no livro da vida. É aí que, ao olhar para trás, é possível constatar o
real valor da entrega. No entanto, é muito comum que o próprio tempo se
encarregue de apresentar as mudanças que separam as pessoas, justamente porque
a vida é movimento e nas idas e vindas, o olhar se altera para abrir novos
caminhos. É por isso que na canção “A
lista”, Oswaldo Montenegro nos desafia: “Faça
uma lista de grandes amigos. Quem você mais via há dez anos atrás. Quem você
ainda vê todo dia? Quantos você já não encontra mais?” Não é à toa que nos
rendemos à beleza de amizades duradouras. Pois reconhecemos a raridade de laços
que permanecem e se fortalecem por autorização do tempo. Ainda mais por conta
da leviandade das relações virtuais nas redes sociais.
Nunca foi tão fácil
encontrar e conhecer pessoas, e tão difícil apertar laços. Nunca foi tão fácil
o acesso à vida de pessoas que mal conhecemos, e tão difícil conhecê-las de
verdade. Nunca foi tão fácil expor o que se pensa, sente e acredita... Mas
parece que nunca foi tão desinteressante e desnecessário. O interesse pelo
outro neste contexto, não se instiga pela vontade de iniciar a amizade, mas sim
pela necessidade de autoafirmação baseada na comparação e na presunção. Não por
acaso, nos tornamos cada vez mais tediosos e depressivos. E não seria exagero
dizer que muitos de nós, embora conviva diariamente a rotina de centenas de
pessoas no Facebook, queira mesmo baixar a guarda para perder o folego dentro
de um abraço amigo.
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