Uma pausa para um cafezinho! Uma conversa à toa para desbanalizar o dia a dia... Um espaço e um momento solto no ar, preso no olhar inutilmente essencial.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Ser E não Ser, eis nossa aflição

Por Joe Cruz

“No ginásio, você se define menos por quem você é do que por quem está sentado ao seu lado”. A frase é do personagem Kevin Arnald, protagonista do seriado americano Anos Incríveis, exibido no Brasil pela TV Cultura em meados dos anos 90.
Os anos incríveis da série acontecem na vida de um adolescente entre o final da turbulenta década de 60 e o começo dos anos 70. A série vai mostrar com particular sensibilidade e Inteligência as nuances da complicada relação entre as fases de transformações de um garoto comum do subúrbio norte americano, e alguns dos fatos históricos que mudaram a maneira de como o mundo enxergava a si mesmo até então e, por conseguinte, a forma como as pessoas enxergavam suas vidas em sociedade, resultando inevitavelmente numa mudança de comportamento partindo da interpretação dos jovens sobre o presente e suas expectativas para o futuro. 

Cenário propício para pipocarem personagens formadores e deformadores de opiniões por todo canto, regando a ideia do pensamento crítico (metendo o pau em tudo e todos) tentando assim firmar conceitos sobre “ter personalidade”, ser inteligente (chato) ou socialmente ativo (militante).
É preciso assumir posições rígidas: republicano ou democrata, direita ou esquerda, Pepsi ou Coca-Cola, Beatles ou Rolling Stones...

Diante disso, quem é Kevin Arnold? Qual importância tem seu primeiro beijo, seu ódio pelo o irmão mais velho, seus medos, anseios, suas dúvidas sobre matemática e sexo?
Nesse mundo efervescente, que dita regras e modelos, que edifica desconstruções, reinventa significados, não há espaço para Kevin ser só o garoto Kevin com suas despretensões, sua inclinação à invisibilidade e ao desinteresse pelos grandes dilemas da humanidade. É preciso criar um outro Kevin, mais maduro, inteligente, engajado, divertido, esclarecido, feliz e motivado.

Em dias atuais, nas redes sociais virtuais, Arnold talvez tivesse um perfil com menos de trezentos amigos e é provável também que não compartilhasse diariamente das variadas opiniões e “sentenças” circulantes pelo espaço de linhas do tempo para atestar suas posições a respeito de tudo e qualquer coisa. Mas é provável também que fizesse algum esforço para ser visto, vez ou outra, como uma pessoa bem adaptada ao meio social, do contrário não faria sentido que ele mantivesse um perfil ativo em rede.

Acontece que nos anos 60 ainda não havia redes sociais virtuais. A maior e melhor rede social para caras como Kevin Arnold sem dúvidas era a escola. Um monte de gente dividindo o mesmo espaço físico, trocando experiências, procurando meios para permanecerem dentro do que era considerado normal, tentando encontrar a originalidade do comum. Talvez até arriscar uma empreitada ou outra para destacar-se positivamente e quem sabe até tornar-se popular conquistando a admiração das outras pessoas. Em resumo, tentando ser alguém interessante.

Ser interessante na escola significa ser alguma coisa que a maioria das outras pessoas gostaria de ser, mas não são. É ser dono de qualidades, talentos, habilidades que não se encontram em qualquer esquina. É cutucar a inveja alheia com vara de condão como se detivesse nela certa magia que não se revela o segredo.

Nessa fase, nem todos buscam esse posto arriscado, pois a popularidade carrega em si um peso que poucos suportariam: atender expectativas o tempo todo a fim de manter a inveja alheia intacta pode ser um problemão. Aqui, não há o conforto do comum, nem a nulidade do anonimato. Por outro lado é onde reside a noção do ser alguém na sua atual definição.
Existo se apareço! E aparecer exige certas habilidades.



Por força da obrigação, aprendemos cedo a conviver com quem não gostamos, a respeitar quem não admiramos, a lidar com situações que não escolhemos, a enfrentar consequências de decisões que não tomamos... O contrário também é verdade. E de maneira geral, é nessa fase onde validamos a importância do “conheça a ti mesmo”, segurando a bronca de querer e não poder. Ou de poder, mas não querer. Ou ainda, de querer, poder, mas não fazer. E em última análise, fazer mesmo sem querer ou poder.
São resoluções de complicações deste tipo que vão estruturar nossa personalidade e, de certa forma, determinar se o que se é capaz de ser é ou não digno da posição de “gente legal”, cutucadora da inveja alheia!

As possibilidades nessa rede social (escola e mais tarde trabalho) encontram limites apenas no encontro afetivo mais imediato que se pode ter com o outro: o contato direto, o tal do olho no olho, ou se preferir, o cara a cara!
É diante do outro que adquirimos a forma aparente daquilo que permitimos revelar sobre nós mesmos (coisa que exige alguma prudência e sensatez). É, portanto diante do outro que se pretende determinada aparência pela qual desejamos ser vistos e reconhecidos de acordo com a personalidade que julgamos possuir. E óbvio que aqui cabe alguma conveniência.

Em perfis criados para redes sociais virtuais, somos convidados à inebriante experiência da multiplicidade, jamais possível para Kevin Arnold e seus amigos de escola. Somos levados para o campo das possibilidades onde experimentamos não só a sensação de sermos constantemente observados, analisados, absolvidos ou condenados, como também nos encantamos diante da amplidão da rede de informações que nos arrebata no vislumbre de poder alcançar centenas, milhares de pessoas bastando para isso não mais que movimentos de dedos. 

Independente de qualquer esforço, todos nós representamos uma imagem que, de certa forma, nos define na opinião alheia.
 Assim como nós também utilizamos de nossa capacidade de compreensão para fundamentar interpretações a respeito das outras pessoas. Naturalmente, quanto maior for o repertório de quem observa, tanto maior e mais rico será o resultado de sua interpretação, o que sem dúvidas, exige algum conhecimento sobre virtudes, principalmente, virtudes morais. 
Claro, a maioria de nós sabe reconhecer o tipo de virtude moral que pega bem no meio de tantos defeitos descritos nos catálogos de falhas humanas espalhados por aí. Saber reconhecer tais virtudes também é sinal de que somos capazes de medir seus efeitos positivos aos olhos dos demais, daí a necessidade de imitá-las, justamente por não possuí-las verdadeiramente.

Nossas habilidades para dissimular virtudes se multiplicaram com a chegada das redes sociais. E com isso talvez tenhamos também ampliado nossa angústia por ter de buscar e encontrar novas identidades, diferentes a cada novo estímulo, empolgante a cada nova expressão e firme a todo novo acontecimento que divide o mundo. Talvez ainda não tenhamos aprendido a lidar com essa liberdade de ser o que se queira para tanta gente e ao mesmo tempo. E é provável que nunca saibamos. No entanto, a experiência de lidar com nossa insuficiência é fundamental para que nossos limites não nos ultrapassem e não nos confundam com aquilo que não somos. Assim, quem sabe, conseguiremos enxergar as qualidades das virtudes que não temos, não como algo que deva ser incorporado ou representado (como uma roupa que não nos serve e não foi feita para nós), mas sim como algo a ser admirado, reconhecido e respeitado.

E, se como diz Kevin Arnold, “...você se define menos por quem você é do que por quem fica ao seu lado”, então que nos cerquemos de nós mesmos, com aquilo que fomos capazes de aprender até aqui, com a visão de mundo que somos capazes de enxergar e com as virtudes e defeitos que a natureza se encarregou de nos conceder.

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