Uma pausa para um cafezinho! Uma conversa à toa para desbanalizar o dia a dia... Um espaço e um momento solto no ar, preso no olhar inutilmente essencial.

sábado, 8 de dezembro de 2018

Gente Estranha (uma abordagem sobre a Alegria)


Por Joe Cruz

Tem gente que se veste de alegria.
Se veste mesmo! Pega a alegria do varal, sacode para desamassar um pouco, suspira o perfume com suavidade e veste. Ajusta a alegria no corpo, deslizando as mãos sobre as dobras mais difíceis, ajeita os excessos com delicada caída e pronto, tá vestida de alegria.
Essa gente nem sempre dispõe de muita beleza física, mas ficam lindas quando se vestem de alegria. O olhar, o cheiro, os gestos... desfilam como numa passarela; parecem querer apresentar um novo modelo, meio retrô, um tanto blasé, quase démodé, coisa de gente ousada, despojada, descompromissada com normas, com o normal. Desconhecem regras, etiqueta, compostura, modos.
Gente vestida de alegria assume uma postura engraçada, meio desengonçada, falam alto, lacrimejam gargalhadas, batem com a mão na mesa, com o pé no chão, com a cabeça no ar. Batem palmas, aplaudem a si mesmas, parecem querer chamar a atenção do mundo todo para sua vestimenta especial. Gente vestida de alegria olha-se no espelho e ri de si mesma, reconhece a graça de seu formato todo esquisito, sem definição, sem motivos... ridicularizam a seriedade da sobriedade da razão, pura emoção! Gente vestida de alegria inutiliza o social, o salto alto, a gravata, o blazer, a etiqueta pendurada na bolsa, o preço da camisa, da cueca, da calcinha, da calça. Parecem andar descalças, pisando sem deixar pegadas. Gente vestida de alegria desconstrói o valor da fachada, o preconceito da piada, a maldade da risada.

Essa gente, quando se veste de alegria, sai de casa para dançar com a vida. Tudo a seus ouvidos soa como sinfonia. Buzinas de carros, marteladas de operários, turbina de aviões, mal humor de patrão... nada disso pra essa gente é ruído. A música alegre parece ser tocada em suas cabeças vazias. Essa gente é leve... E estão vazias, no melhor sentido dessa palavra, porque sabem que para a alegria lhes cair bem, é necessário antes a total nudez, nada por baixo nem por cima. A alegria é peça única e leve, não carece de nenhum acessório para combinar, para complementar, incrementar.
A nudez e pureza são condições para o bom caimento da alegria.
Não adianta querer problematizar tentando fundamentar, detalhar, definir a alegria dessa gente. Só estão vestidas de alegria e pronto, não tem o que pensar. Quem se veste de alegria não pensa nos motivos, não pensa em nada. E isso por si só já é uma festa e tanto. É mais ou menos como diz aquela música que a Gal Costa canta alegremente: “Quando a gente tá contente Nem pensar que tá contente Nem pensar que tá contente A gente quer, Nem pensar a gente quer, A gente quer é viver”. É isso!

Os outros deveriam reverenciar essa gente bem vestida de alegria. Gargalhar com elas, dançar, cantar a música que está na cabeça delas... Só faria bem pra eles, porque essa gente que tem alegria pra vestir não precisa dos outros, mas os outros sim precisam dela. É gente rara, precisa ser valorizada, reconhecida nas calçadas, nas filas, nos locais de espera, no trabalho, em casa e aonde mais se tiver a sorte de encontrá-la.
 
A verdade é que pouquíssimas pessoas têm alegrias nos guarda roupas para vestir quando tiverem vontade ou quando a distração assim permitir.
É provável que todo mundo já tenha tido pelo menos umazinha guardada em algum lugar da casa (ou da alma), mas sabe-se lá por qual motivo já não mais a possui.
Dá pra perceber que algumas pessoas já se vestiram de alegria alguma vez na vida, mas tiraram pra lavar e a esqueceram no varal do quintal por dias a fio. Daí, após sol e chuva, chuva e sol, a alegria secou-se na sombra. Alegria que se seca na sombra, cheira mal. E não dá para vestir alegria sem perfume.
Alegria muito tempo guardada também cheira mal, mofo...

Outras pessoas até têm alegrias nos cabides para enfeitar as gavetas dos guarda-roupas, mas não conseguem se despir totalmente para poder usá-la devidamente. Parecem estar sempre protegidas por casacos pesados e empoeirados, botas de couro até os joelhos, chapéus, cachecol, luvas, touca... Parece que estão sempre esperando um frio cinzento para lhes sufocar a alma dentro do corpo. Alegria sufocada também não dá pra vestir direito.

Percebe-se também que tem pessoas que não se vestem de alegria porque esperam algum momento para se fantasiarem de felicidade, como os foliões que confeccionam por um longo tempo uma linda fantasia para poder vesti-la somente durante alguns bailes de máscaras, tipo aqueles carnavais de Veneza, sabe?

Alegria é diferente de felicidade. Gente vestida de alegria é diferente de pessoa fantasiada de felicidade. E as diferenças são gritantes... Alguns exemplos: pessoa feliz se agarra na sua felicidade com medo (pavor) de que ela escape, fuja, voe.
Gente alegre sabe que alegria vem já querendo ir, como uma visita rápida de um pássaro ou uma borboleta que surge do nada, gruda um sorriso bobo na nossa cara, vai embora e deixa em nós uma vontade de que queira voltar.
Pessoa feliz blinda sua felicidade, protegendo-a trancada em cofres como joias raras para que não seja roubada, usurpada.
Gente alegre doa tudo que a alegria lhe oferece sem economia.
Pessoa feliz sussurra sua felicidade para que não seja invejada.
Gente alegre quer gritar, compartilhar com mais gente possível.
Gente alegre aceita às vezes a tristeza como companhia. A compreende, entende que é visita também, então abraça sua presença com ternura por algum tempo, dialoga com sua dor natural como parte incondicional de seu ser, depois gentilmente pede para que vá embora e volte somente em momentos propícios.
Pessoa feliz teme a tristeza tal qual um horrendo fantasma que deve ser rapidamente exterminado e evitado a todo custo. Não ouve nem uma palavra do que sua própria tristeza tem a lhe dizer e assim amputa uma parte de si mesma por medo de que a conversa lhe convença da fragilidade de sua felicidade.
Alegria é contagiante, felicidade não.
Alegria é muito mais fácil de se reconhecer. Não tem enganos e é quase nula a margem para erros.
Se alguém estiver vestida de alegria é possível enxergar os detalhes no olhar, no riso fácil, no timbre da voz, nos gestos com as mãos, pernas, cabeça. Sem dúvidas você vai saber reconhecer porque vai senti-la. E é bom que tire algum proveito disso.

No entanto uma pessoa que se diz fantasiada de felicidade, apesar de não poder ser contestada, não pode também ser constatada, pois sua fantasia não pode ser comprovada pelos outros. É quase como
aquela história da “roupa nova do rei”, lembra?! O rei havia sido enganado. O fizeram acreditar que ele usava uma roupa linda, perfeita, porém que só ele mesmo ou um grupo seleto de pessoas especiais, providas de capacidades especiais de percepção poderiam ver a tal beleza de suas vestes novas. No entanto, o pobre coitado desfilava ridiculamente pelado por entre as pessoas que não podiam confessar não poderem ver a linda roupa que ele usava, pois se assim fizessem admitiriam serem pessoas comuns, que viam apenas um rei ridículo caminhar nu publicamente gabando-se poder usar uma roupa que ele próprio não era capaz de enxergar e reconhecer. De qualquer maneira, o cara voltava para seu palácio satisfeito e convencido de que se apresentava de forma especial para seus súditos que naturalmente o admiravam.
Ora, fenômeno muito parecido acontece com as pessoas fantasiadas de felicidade, precisam se fazer notar para fazer valer a beleza de sua fantasia.
Já gente vestida de alegria não. Elas sabem que sua roupa foi feita sob medida para seu corpo, não precisa ser bonita, elegante, luxuosa, nada disso. É apenas uma peça de roupa que logo estará no cesto de roupas usadas, misturada a outras peças de roupas usadas esperando para ser levada, depois pendurada no varal para secar e voltar a ser usada quando alguma ocasião permitir.
Gente que tem alegria para vestir não dá a mínima se você pode ou não enxergar as cores da beleza de sua roupa... Gente estranha mesmo.

Agora, de maneira nenhuma estou querendo aqui dizer que uma coisa anula a outra. Ou que o valor de uma se sobrepõe a outra. De jeito nenhum! São diferenças que podem ser reconhecidas por qualquer um com atenção. Também não quero aqui sugerir que gente vestida de alegria não se fantasie de felicidade, mas o contrário me parece improvável, ou seja, alegria sem felicidade é muito possível e confortável até, mas felicidade sem alegria é falso.
No entanto afirmo que fantasia de felicidade e roupa de alegria num mesmo corpo é raridade das mais peculiares. Raro no nível de paixão e amor na mesma medida num único relacionamento: até existe, mas é coisa para dois ou três casais de muita sorte e demanda um tipo de construção quase impossível para a maioria.
Mas aí já é outro assunto...

Alegria é criança inconsequente, serelepe, quer correr e pular, gastar sua energia rápida e intensamente. A felicidade parece ser uma gentil senhora que desfruta de seu tempo com calma e sabedoria, que teme se movimentar demais e acabar caindo sobre as próprias pernas.
De todo modo, se por acaso encontrar uma pessoa feliz e que esteja vestida de alegria, saberá que a primeira coisa que ela poderá lhe oferecer de imediato é sua interpretação de um mundo alegre e de uma vida colorida. E se por acaso, você também estiver usando sua alegria no mesmo momento, a experiência certamente será um interessante acontecimento, digno de ser assistido pelos os outros e depois aplaudido.

Digo isso porque tive a sorte de poder ter experiência de assistir um espetáculo desses. Pude ver muito de perto duas dessa gente vestida de alegria se deliciarem com a vida daquele curto momento. Fiquei perto, me fortalecendo com a alegria delas, me contagiando de tal maneira que passei a fazer parte da coisa. Sem muito esforço eu, que antes estava apenas nu, me vesti também de alegria, alegria emprestada devo dizer, mas alegria.
De volta a minha casa, tratei de abrir as gavetas de roupas, os baús de memórias e o coração em busca de vestígios de alegrias esquecidas. Para meu deleite, atravessei a madrugada me alegrando com antigas alegrias e criando novas para os dias seguintes. Me dei conta de que a busca pela felicidade pode fazer com que esqueçamos as pequenas e imediatas alegrias que já vivemos e as que deixamos passar diariamente. Me dei conta de que é muito mais fácil que pessoas com pouca ou nenhuma alegria para vestir acabem arrancando da gente aquela que naturalmente possuímos, porém embora mais raro, aquelas que tem muitas alegrias para vestir podem oferecer a doação de sua alegria como troca do bom pelo bom. E assim a riqueza de ambos se multiplica.

Como resultado já não me preocupo mais tanto com a busca pela felicidade, quero mesmo é o deleite da alegria, com a maior frequência possível.
Em suma, nada de correr atrás da felicidade, o lance mesmo é correr lado a lado com a alegria.

4 comentários:

  1. Minhas vestes de alegria costumam secar depois das 10 hrs rs. Gente vestida de alegria tem o dom de nos despir de alguma peça que estraga o look do momento, gente alegre nos faz enxergar alegria e afasta o que entristece, faz valer o dia e querer ser alegria do dia de alguém. Ótimo texto Joe Cruz.

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  2. O lance é esse agora!
    Se vestir de alegria

    Obrigada!

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  3. Eu li duas vezes, não porque eu não tenha entendido, mas sim, porque suas palavras valem a pena. Parabéns!!!!!

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