Uma pausa para um cafezinho! Uma conversa à toa para desbanalizar o dia a dia... Um espaço e um momento solto no ar, preso no olhar inutilmente essencial.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Uma amarga estranha história sobre uma doce estranha senhora

Por Joe Cruz

Semana passada, à noite, num terminal de ônibus, fui surpreendido por cutucadas no ombro vindas de uma gentil e desconcertada mulher que tentava encontrar uma maneira sutil para pedir-me ajuda com algumas malas que carregava. Aparentava ter pouco mais de quarenta anos e conservava no olhar uma alegre e quase divertida jovialidade, que também deixava escapar pelo meio sorriso sem graça. O cabelo e as roupas molhadas davam a dica de que havia sido castigada pela chuva que estiava lentamente. De fato, o vem e vai das chuvas daquela noite por pouco também não me encharcaram, o que seria um desastre pois estragaria o livro que tinha nas mãos e tornaria minha viagem de ônibus muito mais longa e chata. Mas este não foi o caso. Eu continuava seco e o livro intacto, inclusive aberto na página dezoito, começando a revelar seus sentidos, tornando-o mais agradável. E nesses momentos, bem se sabe, não é bem-vinda nenhum tipo de interrupção, mesmo lendo em pé, tentando sem nenhum conforto aproveitar o tempo vago antes do embarque. 

Embora não houvesse como a mulher saber em qual nível estava minha leitura, ela pareceu sentir que poderia interromper e por isso demonstrava algum desconforto em precisar solicitar minha ajuda. Entre uma e outra palavra quase inaudível conseguiu enfim pedir o que precisava, por pura necessidade. Realmente não havia como, sozinha, subir as malas para dentro do ônibus sem uma “ajudinha”, como ela mesma preferiu dizer. 
Desconcertado pelo o excesso de cautela da mulher, tratei de deixar claro que não havia nenhum problema e que seria bom (quase um prazer) poder ajudá-la com as malas. Agilmente, coloquei o livro embaixo do braço a fim de deixar as mãos livres e pus-me a pegar as malas uma por vez, ajeitando-as no chão molhado do ônibus. Depois da quarta e última mala, tive certeza de que ela não poderia ter chegado até ali sozinha. E assim sendo, ela provavelmente precisaria de nova “ajudinha” para o desembarque. Bem, mas aí já não seria problema meu. Minha parcela de ajuda já havia sido paga. Missão cumprida. Em pouco tempo o horário de partida do ônibus estaria no limite e a pontualidade do motorista me livraria daquele pequeno embaraço, redefiniria nossos destinos e me permitiria assentar-me confortavelmente num dos bancos à janela para prosseguir com minha promissora leitura. 

Após agradecimentos entusiasmados, a mulher, agora se mostrando mais à vontade e aliviada, porém visivelmente agitada no corredor do ônibus, pôs-se a vasculhar com olhos atentos algum lugar para curtir sua viagem. 
Quis o destino que dentre tantos bancos vagos, ela se animasse justamente pelo que vagava ao meu lado. Acenou levemente com a cabeça como quem oferece gratuitamente uma educação gentil e sentou-se desajeitada esboçando novamente o sorriso já conhecido, no entanto uma tanto mais solto agora. Os olhos reafirmaram a mesma jovialidade de antes. 
Depois de um curto, mas constrangedor silêncio, resolveu sabe-se lá porquê, puxar qualquer assunto. E sem nenhuma surpresa optou por falar sobre o clima. “Que chuva, hein!”. -  Ora, é sabido por qualquer um que quando não se está nenhum um pouco a fim de manter uma conversa com um estranho, é sensato que diante de um comentário como este, se deve apenas acenar positivamente com a cabeça ou no máximo grunhir algo do tipo: “aham”. Pronto, assunto encerrado. Mas naquela ocasião, achei que já havíamos ultrapassado a linha do desconhecido e seria até mal educado de minha parte não corresponder devidamente à iniciativa, acabei cedendo. “Sim, por pouco não me dou mal. A previsão ainda diz que nos próximos dias a tendência é que chova mais! ”. - Bola fora, palavras demais. E muitas palavras numa situação como esta podem indicar erroneamente um sinal verde para uma conversa indesejada. 
Minha leitura, já enciumada, ansiava o salto para a página dezenove..., mas não via espaço. “Gosta de ler? ”. - Ela disse, já emendado a pergunta com uma resposta “Eu também gosto muito”. - “Aham”, arrisquei voltando os olhos para a página dezoito. Tarde demais. 
“Leio poemas. Li recentemente um do Mário Quintana. O que você está lendo aí? ”. -  Covardia... Mário Quintana particularmente me encanta desde a adolescência! Resisti bravamente. Fiz pouco caso do Quintana. Mostrei a capa do meu livro: “Memórias do subsolo”, Dostoiévski. “Hmmm”, resmungou ela sinalizando quase um desapontamento. Era minha deixa para poder voltar a ler sem culpa, afinal de contas não era mesmo minha culpa o desinteresse dela por literatura russa. Mas para minha decepção e surpresa a mulher tinha na manga um bom argumento para continuar a me interromper e não hesitou em usá-lo: “Ler em ônibus me enjoa. Acho que é por causa do movimento... Você não enjoa? ”  - Covarde! O que dizer diante de tão inoportuna insinuação? Se respondesse simplesmente “Não”, talvez pudesse soar grosseiro. E não queria parecer ser grosseiro. Se dissesse “Não” e explicasse o motivo pelo qual não me enjoava, já seria um assunto que, sem dúvidas, se estenderia viagem à dentro. E se dissesse “Sim”, não justificaria meu esforço em tentar prosseguir com a leitura.
Optei sabiamente então a me limitar ao “às vezes”. Não foi suficiente. Ela agora tinha nas mãos a remota possibilidade de eu me enjoar ao ler. “Caso enjoe, tenho um comprimido bom para enjoos. Carrego sempre comigo. Aliás, tenho também comprimidos para dor de cabeça. Nunca se sabe, né? Dores de cabeça são horríveis...” - É verdade, dores de cabeça podem acabar com um dia ou com uma viagem, ou até com uma conversa no ônibus. “Obrigado! ”, disse cordialmente arriscando mais uma tentativa de me voltar ao Dostoiévski. 

O motor enfim deu sinal de vida. As poucas pessoas acomodaram-se em seus lugares e aos poucos o movimento lento do veículo fez as luzes alaranjadas dos postes na rua criarem uma bonita oscilação entre claro e escuro no interior do veículo. “Graças a Deus”, suspirou ela recostando a cabeça no banco almofadado, me dando a impressão de que fosse buscar por sono. “Não via a hora de partir”. - Me enganei, o sono não a encontraria tão cedo... - “Quero que essa viagem passe rápido. Quero chegar logo!”, continuou. “Minha irmã e meu novo cunhado estarão me esperando na parada. Tenho muitas saudades dela”. - Que bom -  pensei, não vai precisar de minha ajuda com as malas pesadas”. 
Por um impulso que não me cabe agora analisar, perguntei para onde ela estava indo. “Voltar para o interior, para minha casa”, respondeu ela inclinando-se para concluir: “Cansei daqui, sabe... Eu não sabia, mas cidades grandes me machucam. Os dias aqui me doem, mas não é uma dor gostosa. Você sabe que existem dores gostosas né? ” - Não, eu ainda não havia pensado no gosto das dores. “É mesmo?! ” -  me limitei a dizer... “Sim... A dor do parto, por exemplo, deve doer muito, mas traz com ela vida. É gostoso pensar que através de uma dor seja possível trazer vida, não é? ” - Pela primeira vez reparei que ela falava com um leve sotaque interiorano. “A tatuagem no seu braço, também é um exemplo”, ela reparou na clave de Sol que tenho tatuada no braço esquerdo e continuou: “Provavelmente te fez sentir dor, mas foi a dor necessária para exibir o desenho que você quer ter no corpo pelo resto de sua vida. Uma dor que atendeu uma vontade sua, então é uma boa dor ”. – Embora, tenha achado aquele papo meio sem pé nem cabeça, me esforcei para compreender que o que ela chamava dor gostosa, não se tratava do gosto pela dor em si, mas o motivo e o resultado dela. “Faz sentido”... Lembrei do Rubem Alves com o “Ostra feliz não faz pérola”. 

Desisti definitivamente da leitura. Não porque me interessei pela conversa sobre dores, mas porque me dei conta de que havia sido derrotado e sei reconhecer uma derrotada. A vontade que ela tinha de falar era infinitamente maior que a minha de ler. Fechei o livro na página vinte e dois e me voltei a ela concordando com o que havia dito, acenando positivamente com a cabeça, mas não ousei falar, o que deu a ela mais espaço para continuar. “Não tive filhos. Não sei como é a dor do parto. Também não tenho tatuagens. Não encontrei nenhum símbolo que me traduzisse ou que valesse a dor das agulhas. – Disse, sorrindo. – “Mas já tive outras dores gostosas e sei que a de agora não é boa ”. – Não posso negar minha curiosidade neste ponto da conversa. Enquanto ela falava, pude também pensar em “dores gostosas” seguindo sua linha de raciocínio, mas antes que eu pudesse falar algo sobre, ela emendou: “Não são só dores físicas que podem ser boas. Uma vez assisti um filme maravilhoso que me fez sentir uma dor imensa na alma, mas ao mesmo tempo me senti maior, mais evoluída depois dele. Lindo filme. Chorei rios. E você não pode imaginar como é gostoso poder chorar por uma dor assim. A dor gostosa é a que te eleva, sabe? Que te transporta para um lugar muito diferente daqueles que os limites dos prazeres convencionais são capazes. Te transforma. Toda dor que eleva e transforma é gostosa, as outras são sofrimentos vãos e deformadores. É por saber disso que não quero mais cidades grandes, aqui minhas dores são inférteis, paralisantes, não me acrescentam mais. ” – Tudo bem, agora sou obrigado a confessar que a conversa começou a ficar interessante. “Algum dia foi diferente? ” – Perguntei tentando não demonstrar muito interesse. – “Claro! Sinto falta de quando não era assim. Vim pra cá porque minha alma não cabia mais em mim. Queria voar muito mais alto do que a cidade pequena poderia suportar. Queria aprender milhões de coisas, conhecer milhões de pessoas, ver milhões de coisas diferentes, queria gastar as pernas de tanto andar, frequentar tudo quanto é lugar. Eu ainda era menina, meus sonhos não me deixavam dormir. Eu tinha que vir. Se não fizesse seria para sempre infeliz”. “Infeliz para sempre? ” – Indaguei
apenas para que ela pudesse explorar ainda mais suas reflexões. “É, infeliz... às vezes penso que a felicidade é como mulheres que nunca estão satisfeitas consigo mesmas, sabe! ” – Disse ela rindo, como se estivesse zombado de si mesma e continuou: “Está sempre fazendo novas exigências, buscando sempre o que não tem, desdenhando o que já possui. Nunca é possível agradá-la plenamente por muito tempo, entende? Ela precisa sempre de renovações, novos motivos, mas nem sempre estamos tão suscetíveis para tanto...” – Eu não sabia se não estava entendo ou se não concordava exatamente com o que a mulher estava tentando dizer. No entanto, ela parecia muito certa no que explicava. Falava como se já tivesse pensado inúmeras vezes sobre aqueles assuntos. Sua veemência era convincente. Minha vontade de ouvi-la era crescente. Tive vontade de lhe perguntar quais eram os sonhos que a trouxeram para cá. Quais eram suas expectativas, o que esperava encontrar e o que de fato encontrou. Quais eram as histórias que a fizeram desanimar e desistir. O que havia lhe tirado a lado bom das dores. Mas só consegui mesmo balbuciar “Sonhos... ” –  Repousei as duas mãos sobre o livro para demonstrar-lhe que as páginas permaneceriam trancadas entre capa e contracapa, não seria mais aberto e ela poderia falar o quanto quisesse. E a essa altura eu esperava mesmo que ela quisesse continuar a falar. “Pois é... sonhos”, completou enquanto abria com curiosa delicadeza a bolsa que estava deitada sobre as pernas, tirando de lá um celular e um pacote de bolachas salgadas. “Quer?” “Não, obrigado. ” – Digitou rapidamente alguma coisa no celular e a luz branca da tela iluminou seu rosto realçando as linhas de expressão que o tempo se encarregou de lhe conceder. Deslizou o dedo pela tela do aparelho e parou numa imagem. Abriu o pacote de bolachas, levou uma até a boca e virou a tela do celular para mim. “Esta é minha irmã e este é meu sobrinho, Lucas” – (Lembro do nome porque é o nome de meu primeiro sobrinho também...).
Na foto havia uma mulher bonita. Parecia ter alguns anos a menos que ela. O garoto sorria largamente e parecia muito alegre e satisfeito apertado no abraço materno. “Lucas tem seis anos. É um anjo! Conto os minutos para revê-lo ”. – É de bom tom fazer algum comentário nessas horas... “Parece bem inteligente...” – Ora, o que dizer quando alguém que você não conhece te mostra fotos de pessoas que você também não conhece?! Foi tudo o que disse olhando a foto. Ela riu divertidamente. “Minha irmã sempre sonhou em casar e ter filhos. Desde muito pequena já dizia que seu maior sonho era encontrar seu grande amor, um príncipe, casar-se com ele, construir uma grande casa e enchê-la de filhos e animais de estimação. Eu achava graça porque ela sempre trazia um brilho fascinante no olhar quando falava sobre aquelas coisas. Casou-se duas vezes, se decepcionou mais na primeira. Lembro-me bem de tudo: seu namorado fazia o tipo do cara perfeito, meus pais o amava. Meu pai ainda mais que minha mãe. Eu também gostava dele, mas o achava um tanto ‘bobo’..., talvez porque eu fosse mais velha que eles. Ele frequentou nossa casa durante o tempo em que namoraram, mais ou menos dois anos... A festa de noivado foi um encanto. A
de casamento então, praticamente parou a cidade! Na época, minha irmã estava insuportável, queria que o mundo girasse em torno dela e da realização de seu sonho, compreensível, mas um saco! Papai teve de vender mais animais e trabalhar mais que o dobro para bancar a festança, mas estava irradiante. Mamãe cuidava de cada detalhe: desde as pétalas de rosas até o ponto de costura mal feito do vestido. De fato, a festa foi maravilhosa! Realmente um encanto! Ela era pura felicidade e merecia tanto mais fosse possível. Se eu não estiver enganada, minha irmã tinha vinte e quatro anos quando se casou e estava completa e perdidamente apaixonada pelo marido, mas ele por mim...”. – “?!” – Arregalei os olhos em surpresa. “Apaixonado por você?!” – “Sim. Acha isso estranho? ” – Na verdade achei estranha a naturalidade dela em falar aquilo. Pô, era o marido da irmã mais nova! Mas entendi logo adiante. Ela riu baixo balançando a cabeça e continuou: “Não se controlam as paixões. Paixões não se apegam a sonhos muito menos respeitam dores alheias, querem apenas consumirem a si mesmas vorazmente até o último pedaço. Paixões não tem cérebro ou coração, são apenas boca, olhos, ouvidos e nariz. Não sabe disso? Pois deveria saber para não inventar de alimentar paixões perigosas! Eu jamais me apaixonaria por aquele garoto. Via-o apenas como um bom rapaz que pudesse realizar o sonho de minha irmã. Apaixonou-se por mim, por conta própria. E mesmo com o passar dos três anos casado com ela, não foi capaz de doutrinar seus sentimentos para mantê-los preservados dentro de si e num dia de bebedeira numa festa de família, falou e repetiu em alto e bom som que não podia mais conviver com o fato de que me amava. ” – Ela levantou uma das sobrancelhas numa expressão meio debochada. – “ ‘Amor’! Dá pra acreditar? ” – “Eita...” -  Colocou outra bolacha na boca. “Eu sonhava mesmo era em ser atriz em São Paulo! Se fosse para viver uma história estúpida de amor que fosse dentro duma novela! Nunca fui louca o bastante para arriscar a alimentar sentimentos fortes por ninguém, sabe?!” – Embora tivesse, naquele momento, me interessado em saber mais sobre o que ela começava a dizer, estava mesmo curioso era por saber da irmã: - “Como ficou sua irmã?!”, perguntei – Outra bolacha... “Desencantou-se com o casamento, mas não com os sonhos. Casou-se novamente, dessa vez com um rapaz cinco anos mais velho que ela. Tiveram um filho já no primeiro ano, o Lucas. Viviam bem, mas depois de dois anos perceberam que não se gostavam o suficiente para conviver por muito mais tempo. E aquele negócio de ‘pra sempre’ não iria acontecer... Hoje ela está namorando, mas do jeito que fala dele, se casam em breve! ”. 

Neste ponto de minha narrativa, o leitor deve convir que não é sempre que se tem a oportunidade de esbarrar numa história como essa dentro dum ônibus. E se leu até aqui, o leitor também deve tentar me perdoar por alongar tanto tal relato, no entanto é provável que compreenda meu interesse em escrever sobre meu inusitado encontro e um pouco sobre o que dele se deriva.
De minha parte, não me interessava devanear ali sobre paixões, sonhos e amores com uma estranha. Nem tampouco filosofar sobre o lado positivo dos sofrimentos que a vida nos submete. Porém, boas histórias de vida sempre trazem consigo sua dose particular de reflexão para quem as ouve e, sobretudo, para quem as vive.
Se ela havia ou não estimulado ou alimentado a paixão do cunhado por ela, não cabe a nós aqui mexericar. Nem tampouco provocar a ideia de que talvez ela também tenha se apaixonado por ele e não poder amá-lo tenha sido a dor (gostosa) que a motivou a partir de sua cidade natal como uma fugitiva com o pretexto de realizar seu sonho em ser atriz em São Paulo. Isso não nos cabe. Nem me cabia naquela hora. Por isso, contive minha vontade de “mexer no vespeiro” e me limitei novamente em apenas estimular sua vontade de explorar tudo o que ela própria havia compreendido de suas histórias e de sua longa passagem pela cidade grande enquanto dividia o banco do ônibus que a levaria de volta para casa.
 – “Sonhava em ser atriz?” – Provoquei inclinando-me um pouco para que meu interesse ficasse mais evidente. “Ah, e como! Me encantavam as novelas. Quando cheguei aqui vi que nada seria fácil. Como de fato não foi. Não foi mesmo. Nenhum um pouco”. – Seus olhos voltaram-se para baixo, como se tentassem resgatar bem no fundo da alma alguma lembrança triste. Continuou falando um pouco mais baixo. “Logo, nos primeiros dias fui logo procurar saber o que era preciso para me tornar uma atriz de novela. Minha ansiedade e alegria eram tamanhas. Não cabiam em mim.
Fui informada de que o teatro era caminho obrigatório para ser uma boa atriz de novela. Conheci rápido um grupo. Como ainda não havia alugado quarto para me hospedar, aceitei o convite de dividir com mais meia dúzia de atores um pequeno apartamento no centro. Tudo muito legal: boa música, filmes, livros, arte pra todo lado, mas nunca me levaram para assistir a uma peça muito menos para atuar. Depois de algum tempo, percebi que eu era vista apenas como a empregada doméstica que ajeitava a bagunça e ajudava nas compras e no aluguel. O dinheiro que papai havia me dado escorria pelas minhas mãos. Tudo era caro. Quando decidi sair, já era tarde. Não tinha mais dinheiro para me manter por nem mais uma semana. Mas eu não podia voltar para casa. Eu não podia desistir no primeiro fracasso. Tratei de sair para tentar arranjar dinheiro. Fiz de tudo. Fui garçonete, ajudante de cozinha, frentista, faxineira, telefonista... boas amizades. Disso não posso reclamar. Conheci muita gente bacana aqui” – Neste momento, pareceu-me ter sentido sua voz embargar... - “Mas atriz não fui...” – A voz agora pareceu assumir um tom mais grave, quase tornando-se agressiva. “E não fui porque não quis. Se um dia me perguntarem porque não fui atriz, digo sem melindre: ‘Porque não quis’. Se existe culpa, assumo, só a minha... Permiti que a vida me engolisse sem mastigar, que me comesse rapidamente sem ao menos sentir meu sabor. Entre um emprego e outro, entre um namorado e outro, um apartamento e um quarto de hotel, a vida foi me arrancado pedaços com dentes afiados e fome voraz. 
O tempo... Ah, o tempo. Já passaram quase doze anos. Verdade seja dita: não posso ser injusta. Tive bons tempos nos últimos anos... Poucos, mas bons. Momentos raros da vida se mostrar menos faminta e mais apetitosa. 
Talvez pudesse ter me dedicado mais ao amor, sabe? O medo sempre me afastou disso... mas hoje percebo que bem poderia ter ido mais fundo ou deixar que fossem mais fundo em mim. Tive oportunidades. Acho que almas que descobrem o amor são mais suscetíveis à realização dos sonhos, não acha?” – Pensei por um instante. – “Não sei... Pode ser.” – De fato não quis entrar em nenhuma reflexão sobre aquilo. Pressentia que o fim da viagem estava próximo e não queria perder tempo falando sobre o que eu pensava, mas sim aproveitar o tanto quanto fosse possível aquela oportunidade de ouvir quem se dispôs a esmiuçar pontos delicados da própria vida com um estranho. 
Além do quê, pensei ali, quem ama ou descobre amar, quer mesmo é viver o amor e não pensar mais em nada. Nem em sonhos. Sonhos derivados do amor pretendem, a cima de tudo, reafirmar e potencializar o sentimento neles mesmos. 
Parti da ideia de que ela estivesse falando do amor romântico, aquele que uma pessoa sente por outra pessoa. E não do amor pelo planeta, pela profissão ou sei lá mais o quê. Amor de gente por gente mesmo. E isso é coisa complicada de falar. Quem sente só sente mesmo e toca a vida sentindo. Não vai ficar por aí debatendo se isso é bom ou ruim, ou se engrandece a alma para a realização de sonhos. Sendo assim o meu “Não sei...” estava de ótimo tamanho. 

As luzes amarelas dos postes nas ruas começavam a invadir o ônibus novamente, como quando partimos. Isso era sinal de que havia uma parada próxima. Poderia ser a parada dela. 
A mulher agora esboçava certo ar de despedida. Meteu novamente a mão dentro da bolsa sob as pernas e tirou de lá dois bombons Sonhos de Valsa. Continuou a falar enquanto desembalava cuidadosamente um deles. – “Não sabe... Quem é que sabe, não é? Existem coisas que é melhor não saber mesmo. Não amei. Provavelmente eu não saberia amar. Isso talvez fosse motivo para mais uma frustração”. – Me pareceu aí que ela tentava fazer um “balanço” sobre a vida. Uma espécie de “final das contas”. Voltou os olhos para mim, estendendo a mão aberta com o Sonho de Valsa e continuou: 
- Acho que para amar alguém é preciso alguma competência. Digo, algum tipo de proeza, quase um dom. Não sei se me entende. 
- Acho que sim... – Disse eu olhando a mão dela aberta com o chocolate na palma.
- Já menti quando a verdade era indispensável e verdadeira demais quando a mentira era necessária. Isso é coisa de quem não sabe...  Quando estamos à mira das expectativas de outra pessoa ou quando nós mesmos miramos em outra pessoa o gozo de nossas satisfações, a decepção é inevitável. Amar parece exigir uma grande capacidade para lidar com decepções. Não é para qualquer um. Já sofri algumas de leve. Não aprendi nada com elas a não ser não querê-las mais. O erro e o engano me perseguiam quando suponha gostar de alguém. Enquanto procurava perdoar-me buscando meios para compreender os erros alheios, perdia-me nos caminhos que me levaram aos meus próprios erros... Definitivamente amor não é coisa para amadores!
Riu largamente emendando o som de seu riso com uma pergunta desconcertante:
- Você mente?
- Às vezes... 
- Toma, pega. É gostoso. – Disse ela já colocando o Sonho de Valsa em cima do meu livro.
- Não, obrigado. Não gosto de chocolate.
- Essa é uma das vezes que provavelmente esteja mentindo.
- Não... Sim. Quer dizer, não gosto tanto de chocolates. Mas Sonho de Valsa é bom.
- Então pega! Leva-o para onde estiver indo. Para lembrar-se que a viagem foi doce. É sempre bom que se tenha um bom sabor no final. Guarda sempre contigo um bom sabor. Não devore seus bons sabores com fome e pressa, mas com apetite e calma. 
Se for assim, não te importará o quanto experimente o amargo ou o insosso da vida, no final vai saber que tem um doce a sua espera. 

Ela ia aumentando o espaço das pausas entre as palavras enquanto falava. Se levantou meio desajeitada arrumando as roupas. Com alguma tristeza, ajudei a retirar as malas do bagageiro. O ônibus parou e a desequilibrou levemente. Lá fora, começava uma garoa fraca que fazia deslizar pelo vidro da janela uma ou outra gota, misturando-se e criando uma bonita dança transparente.
A porta abriu e de lá pude ver uma pessoa entrar e carregar as malas para fora. 
Acabou. Ainda tivemos tempo para um rápido e tímido aperto de mãos. O ônibus partiu novamente e ainda pude ver a mulher olhar para dentro e acenar um carinhoso tchau. 

Minha viagem ainda teria um longo tempo a diante. 
Com o banco agora vago ao meu lado, poderia retornar à minha leitura. Tentei, mas não consegui. 
O que será que ela iria fazer quando chegasse em fim à sua cidade natal? Insistiria em ser atriz? Tentaria amar alguém, ter família e bichos de estimação? Escreveria um livro sobre suas aventuras na “cidade grande”? O que seria dela? 
Pensei pelo resto da viagem muitas possibilidades de desfecho para aquela vida. Finais felizes, outros nem tanto. Mas o que mais me arrebatou, inclusive motivando a escrever tudo isso que aqui está exposto, foi um sentimento acalentador de poder perceber que estamos soltos ao acaso de poder cruzar, sem mais nem por que, com pessoas e histórias. Histórias de pessoas que não precisamos saber o nome, nem que seja necessário que saibam o nosso. Histórias sem títulos, sem finais... Simples acontecimentos a que todos estamos suscetíveis. Hoje ouvimos, amanhã contamos. 
Pensei carinhosamente durante meu desembarque que a tristeza daquela mulher havia a tornado encantadora. Pensei também que já quase ao final do ano, não lembro de ter me encantado muitas vezes durante a passagem dos dias. E como seria bom que no próximo ano pudesse encontrar mais pessoas encantadoras na fila do banco, da padaria, do supermercado, numa praça qualquer... E ter certeza de que o tempo pouco tem a ver com a intensidade das relações. Como foi rápido. E como foi bom saber que existem pessoas que passam rápido demais por nós enquanto outras ficam por muito mais tempo do que deveriam.

2 comentários:

  1. E quem disse que ela não foi atriz? No último momento na volta pra casa foi a protagonista da sua breve/longa história. Tem pessoas que passam na nossa vida pra nos proporcionar memorias maravilhosas ou não, mais nos proporcionam algo. Nesse caso foi uma historia vivida com momentos doces e amargos, mais a lembrança que fica. Penso que a vida dessa Mulher ficaria ainda mais doce em saber que um pequeno momento da vida dela virou uma pequena passagem em um blog. Antes de voltar para sua origem, seu sonho realizado! Feliz ela ficaria em saber que a ela foi ouvida com coração, ultimamente as pessoas poucos se importam com a história de um desconhecido, mais que sorte a dela. Eu no seu lugar já não conseguiria estender tanto já que ia ficar presa na primeira fase: amor/família/cunhado/irmã como assim? Ainda bem que conseguiu tirar mais que isso já que os assuntos do coração não têm explicação. Muito boa viagem, valeu a pausa no Dostoievski, com certeza deve ser uma releitura e sempre é bom historias novas.

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  2. Ela foi atriz e tu escreveu o roteiro... Eu perdi meu ponto meu ônibus devorando essa história!
    Que delícia de café.

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