Uma pausa para um cafezinho! Uma conversa à toa para desbanalizar o dia a dia... Um espaço e um momento solto no ar, preso no olhar inutilmente essencial.

sexta-feira, 1 de março de 2019

O Sexo (entre parênteses)

Por Joe Cruz

Vamos falar (escrever) sobre sexo...
Esse é um bom tema para se falar, não de pensar (ainda não sei se é também bom de se escrever. Isso vamos descobrir já, já!). Se bem que para se escrever sobre alguma coisa, tem que se pensar sobre ela. Mas, definitivamente, sobre sexo é melhor falar do que pensar (provavelmente você agora deve estar pensando que melhor do que falar, pensar ou escrever, o bom mesmo é fazer. O que eu jamais descordaria.), porém neste momento não há esta opção. Por tanto vamos tentar fazer diferente aqui. Um texto em prosa prazerosa talvez. E neste caso, o cuidado com as preliminares é fundamental. Porque é a partir dela que a coisa vai ganhar a forma que lhe é própria e nos revelará a intensidade dessa nossa mini relação. Se será curta ou longa não é tão importante, desde que seja prazerosa para nós dois, digo entre mim que escrevo e você que lê.

Uma importante condição, antes de qualquer outra (e sem dúvidas, a principal) é que estejamos a fim de continuar, isto é, eu de escrever e você de ler. Do contrário é possível que nos decepcionemos no final ou, pior, nos arrependamos. E vamos perder tempo depois procurando motivos para justificar a nossa falta de prazer.
Outra condição (que não precisa ser uma regra) é que não tenhamos pressa. O que você vai fazer depois de sair correndo daqui?
Você deve saber que, salvo algumas exceções provocadas por específicas situações, o prazer é melhor sentido sem pressa...  Esse lance das rapidinhas só vale a pena quando oferecem a mesma intensidade de um haicai (aqueles poeminhas curtinhos, porém tão bem pensados que tem a força de um livro inteiro). Se não for como haicais, o prazer apressado é só um prazerzinho rápido pra gente lembrar que existe alguma graça em poder senti-lo.

Também não é bom que criemos muitas expectativas aqui. Se eu (escrevendo) ficar o tempo inteiro pensando no que você (lendo) está pensando, corro o risco de me prender ao que penso que você espera de mim, e dessa maneira posso não ficar a vontade para lhe oferecer o que realmente sou. E assim você terá de mim apenas uma versão que pretende atender seja lá o que estiver esperando. Se isso já parece confuso em pensamento, imagina em ato.
Então deixemos de lado também esse negócio de performance extravagantes para impressionar. Serei o que sou, você o que é e no final saberemos o que somos um para o outro.

As ligações possíveis entre escrever e transar podem ir muito além do que as que foram estimuladas aqui. E obviamente existem várias outros exemplos que possibilitam a comparação com a prática sexual. Sabemos disso porque muita gente não hesita em usá-las sempre que uma mínima oportunidade lhes bate à porta. Alguns duplos sentidos e trocadilhos chegam a ser irritantes.
Você deve conhecer alguns e talvez até tenha se valido de um ou outro quando quis se referir ao sexo. Se você não usa, conhece alguém que curte um trocadilho meio safado às vezes. É normal. Eu, particularmente, só não uso porque acho de mal gosto... Mas não faço nenhum julgamento moral de quem gosta. Não vejo como uma questão de caráter, fico mais do lado de que isso tem mais a ver com uma dificuldade herdada das gerações anteriores por não ter conseguido lidar com a coisa naturalmente no âmbito social.

Outro dia, tive que parar por alguns minutos para poder entender o que um colega de escritório quis dizer com a expressão “acho que ela dormiu de calça jeans ontem...” referindo-se a uma moça que estava num mal humor dos diabos logo pela manhã. Se você, assim como eu, não sacou logo de cara, a expressão quer dizer que o mal humor dela se devia ao fato de ela não ter transado na noite anterior. E logo, sexo e bom humor, aparentemente estão ligados! Será?! Provavelmente essa é só mais uma das coisas que a gente fala e repete sobre sexo que acabam se tornando verdade, lei... Mal gosto mesmo.
Sem contar as piadinhas (geralmente sem graça) que alguns caras gostam de soltar para tentar
acessar o interesse sexual da outra parte. Algumas meninas também curtem uma ou outra piadinha de teor picante para se aproximar da intenção da outra parte, mas em número muito inferior ao dos caras.

Estou me referindo aqui ao universo menino e menina porque é o que comumente vemos por aí, mas é provável que o fenômeno acontece com menino e menino, menina e menina de forma parecida.

Sem dúvidas estamos pagando um valor considerável de uma conta deixada por nossos avós e dos avós antes deles. E é certo que também deixaremos boa parte dela ainda para nossos netos. Isso se já não estivermos criando uma outra ainda maior e mais complicada de quitar.
Apesar de dividirmos a mesma conta com os safadinhos dos anos dourados, existe uma importante diferença a ser destacada aqui que é: eles talvez não soubessem que estavam aumentando e deixando de herança uma conta que eles também herdaram.
O assunto era realmente um grande tabu. E não é que se falava mal (como nós), é que não se falava nada mesmo. Sexo era assunto para especialistas ou para se falar em tom de quem cometeu um crime ou está prestes a cometer um.
Se ainda hoje olhamos meio desconfiados para quem se dispõe a essa façanha, tenta imaginar o que era tagarelar sobre sexo há, sei lá, 60 anos!
Freud e sua turma de intelectuais, médicos e psicanalistas certamente desconfiavam que aquela repressão toda, cultivada por tanto tempo, iria trazer graves problemas para serem resolvido mais tarde (esse “mais tarde” ainda não chegou e, ao que parece, está bem longe de chegar). Mas Freud e seus amigos era pouca gente perto da galera transante da época. Portanto, conversar sobre o tema se restringia a estudiosos muito interessados na teoria da coisa ou a uma parcela muito pequena de desbocados, o que não significa que tinham qualquer dificuldade em praticar o assunto não falado.
A população só aumentou de lá pra cá e, naturalmente, através do meio mais comum de reprodução humana, o sexo. E isso também quer dizer que não falar muito sobre sexo, não atrapalhava em nada em praticá-lo bem e muito, ou mal e muito...Mas muito com certeza.
Teoria e prática se separam estruturalmente quando o assunto é sexo. E ainda hoje continua sendo assim... (desconfio que quem curte teorizar muito o sexo, tem alguma dificuldade em praticá-lo, justamente por estar sempre tentando enquadrar preceitos teóricos ao ato).

Não se preocupe. Não vamos nos aprofundar em Freud e suas ideias de repressão sexual, nem vamos mais falar sobre o sexo dos nossos avós, nem de contas a pagar. São assuntos de fato broxantes... E a última coisa que queremos aqui é nos desestimular. Só foi uma breve pincelada num contexto importante para prosseguirmos com essa transa.

Não tem jeito, o sexo sempre estará no topo dos interesses. Independentemente de qualquer outro interesse que você tenha: dinheiro, profissão, religião, time de futebol... qualquer outro. A não ser que você faça parte de alguma fatia da sociedade que tenha a castidade como prioridade, tipo um padre ou uma freira (e mesmo assim ainda tenho dúvidas quanto ao interesse deles). Ou caso você seja uma dessas pessoas assexuadas, tenha algum problema com hormônios, sei lá! Do contrário, o sexo grita aí dentro de você tão alto quanto a fome ou a sede. Ele domina sua mente e consome boa parte do que você pensa. Tudo bem, pode negar agora, mas sugiro que passe a reparar melhor...
De certo que existe um esforço (ainda bem para alguns) em tentar disfarçar esse impulso. Mas naturalmente ele sai pelos poros se formos motivados e estimulados a explorá-lo. E claro, essa vontade parece estar sempre em alerta para o menor sinal da possibilidade de exploração. Talvez por isso tantas tentativas insistentes de acessar o assunto através de senhas, sinais, códigos, qualquer coisa que dê abertura, ou melhor, entrada para esse mundo encantado do sexo.

Explorar o sexo equivale a tentar explorar a si mesmo, no sentido de descobrir ferramentas no próprio corpo (e mente), aprender o que elas são capazes de oferecer para desenvolver os mecanismos para a realização do próprio prazer e, assim fornecer prazeres a outro corpo também. É no outro corpo onde se valida a qualidade dessas descobertas. Dar e receber... (ou pelo menos é assim que deveria ser!). Desprovido da intenção dessa troca, o sexo não é transa, é masturbação ou coisa do tipo.

É... No geral é isso mesmo, corpos que se enlaçam buscando em si e no outro uma fonte eficiente de prazeres.
O corpo é onde mora o sexo e torná-lo atraente para o desejo natural de outro corpo é uma das principais motivações diárias pra muita gente, objetivo sério.

Não é à toa que as academias ficam lotadas em certos períodos do ano (pouco antes do verão). 
Tudo bem que para um ou outro tem o lance da preocupação com a saúde etc e tal, mas particularmente acredito que o que leva mesmo a (grande) maioria das pessoas à academia é a vontade de tornar o corpo mais atraente.
Certamente terão aqueles que vão dizer que admirar o próprio corpo e pretender que ele seja admirado é fundamental para a auto estima coisa e tal, até porque está super na moda esse lance de que “você tem que amar a si mesmo”! “Se amar mais”, “se amar primeiro”... Essas coisas aí que você já deve ter ouvido (lido, assistido, visto) também.

Não gostar de si (da própria imagem, melhor dizendo) é um pecado horrível para a atualidade. Não importa se você se acha baixo ou alto demais, preto ou branco demais... O importante é que você goste de si do jeitinho que é e consiga transmitir esse sentimento ao mundo de algum jeito.
Para o bem dessa nossa relação, não vamos entrar aqui no mérito do “amor próprio” em detrimento da vaidade excessiva, embora ela seja de particular relevância para um assunto como esse que nos propomos aqui. Porém entrar nessa questão certamente nos levaria a trilhar um caminho que talvez nos deslocasse demais... Sendo assim, melhor não arriscar.

Realmente aqui não dá para generalizar. Pessoas diferentes tem maneiras diferentes de tentar parecer atraentes, mas não se pode negar que é através do cuidado com a forma física que isso se torna mais evidente. E, novamente, não inclino aqui nenhum julgamento moral. Não mesmo. E neste caso até acho de bom gosto. Se não fosse tímido e um tanto desajeitado, me enfiaria também numa academia lotada e só sairia de lá quando me sentisse suficientemente atraente!
O mal gosto não está em cuidar das formas para sentir-se bem com a própria imagem e poder desfilar por aí satisfeito (a) com os olhares atraídos. O problema começa quando as demonstrações narcísicas ultrapassam a linha explícita do acesso ao outro e invade o território da inconveniência.
Poucas situações são mais chatas que as de uma pessoa que se ama demais pretendendo que você a idolatre... É! Porque aí começa aquele negócio de falar de si o tempo todo como se não houvesse mais nada no mundo. E vem aquele negócio também de achar que a conquista é somente uma questão de tempo (e jeito) porque não há humano vivo capaz de negar um corpo perfeito dando sinais de que é com você que ele pretende gastar um tempo deitado (sentado, em pé...). A auto apreciação constante daqueles que se dispõe a usar o corpo como arma de sedução, pode levar o jogo da conquista aos limites do cansaço psicológico (chatice mesmo).
Se essa insistência já é um porre quando praticada por homens, no caso das mulheres beira o deprimente.

Seduzir é de fato uma arte. E ela geralmente vem muito bem acompanhada por uma naturalidade muito comum em pessoas que possuem já em sua personalidade um toque essencial de autenticidade. A beleza física não é mais que o impulso fundamental para o que segue nessa deliciosa partida a dois (a três, quatro...). As regras desse jogo são implícitas, estão sempre naquilo que não é dito. Nesse processo, dificilmente as intenções se anunciam explicitamente, no entanto elas se revelam em cada mínimo gesto.
A clássica jogada de cabelos seguida por uma leve inclinada de pescoço para o lado que algumas mulheres costumam fazer quase que inconscientemente nessas situações, ou a cruzada de pernas no estilo Sharon Stone no filme “Invasão de privacidade” de 1993, ou o tom das vozes meio lento seguido por olhares um tanto inebriados pela iminência de algum toque, mínimo que seja. Tudo isso faz parte do jogo. As permissões vão se abrindo conforme o jogo vai ganhando consentimento, como portas que vão se abrindo a cada nova senha descoberta. As gargalhas forçadas vão se tornando risos contidos e mais sinceros, o gelo inicial vai se derretendo lentamente, escorrendo pelos lábios, misturando-se à saliva e se transformando em palavras aquecidas; a interpretação dos entraves: o não que é sim, mas pode ser não mesmo (dependendo de como você entender). O talvez que pode ser sim, mas tem cara de não. O sim que é sim só até certo tempo, depois vira um talvez e por fim é não mesmo. O não que tem que ser sim naquele minuto senão pode virar um talvez que vai voltar a ser não... Enfim. Um jogo!

Em geral, os caras têm muita dificuldade no desenrolar desses entraves e correm o risco de colocar tudo a perder, alguns simplesmente não sacam quando o não é não mesmo. E outros incrivelmente passam batido pelo sim... Algumas meninas também dão tropeçadas parecidas, mas em geral elas tem mais astúcia para lidar e sair desse tipo de situação.
Infelizmente alguns caras ainda entendem a coisa toda como uma espécie de jogos de baralho (sem cartas) onde acreditam que o outro jogador (no caso, a jogadora) está sempre blefando, no estilo: “ela quer, mas ainda está tímida”. Ou “ela quer muito, mas ainda não sabe”. Ou ainda pior, “ela está se fazendo de difícil”...
Ainda pode piorar muito para as meninas quando caras confundem simpatia com atração. Aí a coisa pode se complicar no nível hard, porque, sabe-se lá como, existe neles uma tecla automática que é capaz de traduzir um “foi muito legal conversar com você”... para “eu quero muito, muito, muito mesmo transar com você”!
Tá, tudo bem... Concordo que fui agora clichê demais...
Apesar de tudo isso, se as partes sobreviverem a esses pequenos obstáculos (falsos sinais, sinais mal interpretados, entraves, confusões de intenções, inconveniências...) é muito provável que a coisa evolua positivamente. (Na sua ou na minha casa?).
Tudo agora é uma questão de uma melhor compreensão dos desejos para a evolução dos sentimentos.

É de bom tom notar aqui que um corpo atraente não necessariamente vem acompanhado por um rosto bonito. E vice-versa. A beleza é de fato um conjunto de qualidades. Você já deve ter tido alguma experiência com isso: pessoa bonita, traços, formas... tudo. Porém não é necessário mais que dez minutos de conversa para que aquele prazer visual se torne num desarmonioso e pedante momento. O contrário também é válido, ou seja, uma pessoa nada ou pouco atraente, pode ser capaz de oferecer horas de um contato extremamente rico e prazeroso. Isso quer dizer que, indiretamente, pessoas pouco atraentes fisicamente (feias) tem as mesmas oportunidades de sucesso no jogo da sedução. Só que não!
Apesar de coerente, não devemos nos prender muito em hipocrisias desse tipo. Geralmente pessoas escolhem seus parceiros sexuais pela beleza física. Ponto. O que vem depois são esforços para manter a potência do impulso visual.
É uma questão de atração física mesmo, não intelectual. Estamos falando de sexo, não de amor (por enquanto).
Parece até que posso sentir as pedras vindo em minha direção! Mas não precisamos ser tão críticos com uma opinião. Pessoas pouco atraentes fisicamente certamente transam tanto quanto as pessoas gostosas. E se duvidar transam até mais! De um jeito ou de outro, as pessoas encontram seus parceiros equivalentes e o resto é cama (sofá, banco de carro, elevador...).
Obs. Parêntese grande e necessário: (Não podemos desconsiderar aqui aquelas pessoas que selecionam seus parceiros por interesses de qualquer tipo que não apenas a relação sexual, como grana, posição social ou qualquer outra vantagem isolada do prazer oferecido pelo sexo. Porém, preferi me limitar no lance biológico mesmo, da atração física e equivalência natural). 
Dito isso, vamos continuar...

Já que encostamos involuntariamente neste assunto, tenta reparar como é mais fácil encontrar por aí mulheres bonitas com caras feios do que caras bonitos com mulheres feias. Será que isso tem alguma explicação coerente? Pensa aí! Não estamos buscando nenhum dado cientifico, apenas traços de comportamento. Se tiver alguma pista, me avisa.
É também mais comum encontrar meninas que não reconhecem em si o valor que naturalmente possuem para agregá-lo na escolha de seus parceiros. E aí vem a parte triste da iniciação sexual de muitas delas.
Além de uma pobre e deturbada compreensão de si mesmas (muitas vezes influenciada pela visão social), muitas dessas meninas carregam consigo um histórico complicado com relação à própria sexualidade: abusos, repressão excessiva (ou nenhuma), imagem negativa do sexo (ou positiva de mais), enfim... Óbvio que isso há de se descarregar em algum lugar e em algum momento. E geralmente acaba sendo na sensação de poder sobre o próprio corpo, no início da adolescência. Essa é a sensação de poder controlar algo que pertence somente a ela e, portanto, poder fazer dele o que bem entender. Se tem uma coisa que as meninas descobrem muito cedo e facilmente é que seu corpo tem valor. Isso se confirma em todo lugar, da tv às bancas de jornais.
O que tem valor cativa poder. “Meu corpo, minhas regras” (nem sempre funciona, mas não vamos entrar em questões muito complexas).

Com esse poder em mãos, meninas “despreocupadas demais” e pouco seletivas correm o sério risco de entregá-lo a quem pouco é capaz de reconhecer tal valor. Acontece. E muito.
Os motivos são variados: curiosidade, pressa, pressão do namorado (ficante, crush, seja lá como se chama hoje), revolta (sim, meninas revoltadas podem querer transar com qualquer um como forma de retaliação!), competição (pois é... meninas também podem querer transar porque todas suas amigas já transaram e ela ainda não porque  escolhe demais!). Enfim, seja lá por qual motivo, essas meninas podem ceder o corpo em uma experiência ruim, sem nada que faça valer o valor que ela suponha ter para o ato: comum demais, sem graça, pouco ou nenhum prazer (pra ela), rápido e dolorido.
Por não ter havido antes muito cuidado na escolha do “sortudo”, é bem provável que não haja sentimento nenhum que se possa pôr no lugar da frustração. Já foi. Coisa desse tipo fica. Influencia ativamente as outras transas. Na tentativa de correção desse primeiro tropeço, vem a procura de uma nova experiência com outra pessoa (não muito diferente). Depois outro e outro e assim até que se acumule um considerável portfólio com variadas experiências.

Em sexo, experimentar não é mau conselho. Até porque é também através de saber o que é ruim que se abre o espaço para a possibilidade do bom. No entanto, o teor de cuidado e exigências nessas experiências pode ser a garantia da satisfação de experiência futuras.
Apesar de tudo isso que rodeia o sexo, no fundo e no final das contas o que se busca mesmo é o prazer em seu estado mais natural possível. Mas não o prazer isolado dos outros sentimentos que envolvem a relação física e psicológica entre duas pessoas. A atração sexual por si só não é garantia de orgasmos múltiplos nem de afetos intensos. Não se leva para a cama apenas corpos sedentos para se enlaçarem visitando o interior um do outro para tirar deles o máximo de estímulos possível. Deitamos com histórias de vida, abraçamos sensibilidades, beijamos sentimentos complexos e penetramos em universos diferentes do nosso. E é justamente essa troca de sensações que nos completa na transa, a capacidade de poder se deslocar por um instante de nosso próprio eixo para adentrar a intimidade do outro corpo com a permissão de alcançar também sua alma. É preciso um cuidado delicado e carinhoso para se chegar tão fundo em alguém. E é preciso também um “Q” de cumplicidade para se manter lá. O prazer que se segue após esse tipo de penetração é a certeza de ter tido a oportunidade de explorar em si mesmo e no outro tudo aquilo que se pode oferecer como fonte de prazer e assim, talvez quem sabe, abrir também a possibilidade para o amor.

sábado, 8 de dezembro de 2018

Gente Estranha (uma abordagem sobre a Alegria)


Por Joe Cruz

Tem gente que se veste de alegria.
Se veste mesmo! Pega a alegria do varal, sacode para desamassar um pouco, suspira o perfume com suavidade e veste. Ajusta a alegria no corpo, deslizando as mãos sobre as dobras mais difíceis, ajeita os excessos com delicada caída e pronto, tá vestida de alegria.
Essa gente nem sempre dispõe de muita beleza física, mas ficam lindas quando se vestem de alegria. O olhar, o cheiro, os gestos... desfilam como numa passarela; parecem querer apresentar um novo modelo, meio retrô, um tanto blasé, quase démodé, coisa de gente ousada, despojada, descompromissada com normas, com o normal. Desconhecem regras, etiqueta, compostura, modos.
Gente vestida de alegria assume uma postura engraçada, meio desengonçada, falam alto, lacrimejam gargalhadas, batem com a mão na mesa, com o pé no chão, com a cabeça no ar. Batem palmas, aplaudem a si mesmas, parecem querer chamar a atenção do mundo todo para sua vestimenta especial. Gente vestida de alegria olha-se no espelho e ri de si mesma, reconhece a graça de seu formato todo esquisito, sem definição, sem motivos... ridicularizam a seriedade da sobriedade da razão, pura emoção! Gente vestida de alegria inutiliza o social, o salto alto, a gravata, o blazer, a etiqueta pendurada na bolsa, o preço da camisa, da cueca, da calcinha, da calça. Parecem andar descalças, pisando sem deixar pegadas. Gente vestida de alegria desconstrói o valor da fachada, o preconceito da piada, a maldade da risada.

Essa gente, quando se veste de alegria, sai de casa para dançar com a vida. Tudo a seus ouvidos soa como sinfonia. Buzinas de carros, marteladas de operários, turbina de aviões, mal humor de patrão... nada disso pra essa gente é ruído. A música alegre parece ser tocada em suas cabeças vazias. Essa gente é leve... E estão vazias, no melhor sentido dessa palavra, porque sabem que para a alegria lhes cair bem, é necessário antes a total nudez, nada por baixo nem por cima. A alegria é peça única e leve, não carece de nenhum acessório para combinar, para complementar, incrementar.
A nudez e pureza são condições para o bom caimento da alegria.
Não adianta querer problematizar tentando fundamentar, detalhar, definir a alegria dessa gente. Só estão vestidas de alegria e pronto, não tem o que pensar. Quem se veste de alegria não pensa nos motivos, não pensa em nada. E isso por si só já é uma festa e tanto. É mais ou menos como diz aquela música que a Gal Costa canta alegremente: “Quando a gente tá contente Nem pensar que tá contente Nem pensar que tá contente A gente quer, Nem pensar a gente quer, A gente quer é viver”. É isso!

Os outros deveriam reverenciar essa gente bem vestida de alegria. Gargalhar com elas, dançar, cantar a música que está na cabeça delas... Só faria bem pra eles, porque essa gente que tem alegria pra vestir não precisa dos outros, mas os outros sim precisam dela. É gente rara, precisa ser valorizada, reconhecida nas calçadas, nas filas, nos locais de espera, no trabalho, em casa e aonde mais se tiver a sorte de encontrá-la.
 
A verdade é que pouquíssimas pessoas têm alegrias nos guarda roupas para vestir quando tiverem vontade ou quando a distração assim permitir.
É provável que todo mundo já tenha tido pelo menos umazinha guardada em algum lugar da casa (ou da alma), mas sabe-se lá por qual motivo já não mais a possui.
Dá pra perceber que algumas pessoas já se vestiram de alegria alguma vez na vida, mas tiraram pra lavar e a esqueceram no varal do quintal por dias a fio. Daí, após sol e chuva, chuva e sol, a alegria secou-se na sombra. Alegria que se seca na sombra, cheira mal. E não dá para vestir alegria sem perfume.
Alegria muito tempo guardada também cheira mal, mofo...

Outras pessoas até têm alegrias nos cabides para enfeitar as gavetas dos guarda-roupas, mas não conseguem se despir totalmente para poder usá-la devidamente. Parecem estar sempre protegidas por casacos pesados e empoeirados, botas de couro até os joelhos, chapéus, cachecol, luvas, touca... Parece que estão sempre esperando um frio cinzento para lhes sufocar a alma dentro do corpo. Alegria sufocada também não dá pra vestir direito.

Percebe-se também que tem pessoas que não se vestem de alegria porque esperam algum momento para se fantasiarem de felicidade, como os foliões que confeccionam por um longo tempo uma linda fantasia para poder vesti-la somente durante alguns bailes de máscaras, tipo aqueles carnavais de Veneza, sabe?

Alegria é diferente de felicidade. Gente vestida de alegria é diferente de pessoa fantasiada de felicidade. E as diferenças são gritantes... Alguns exemplos: pessoa feliz se agarra na sua felicidade com medo (pavor) de que ela escape, fuja, voe.
Gente alegre sabe que alegria vem já querendo ir, como uma visita rápida de um pássaro ou uma borboleta que surge do nada, gruda um sorriso bobo na nossa cara, vai embora e deixa em nós uma vontade de que queira voltar.
Pessoa feliz blinda sua felicidade, protegendo-a trancada em cofres como joias raras para que não seja roubada, usurpada.
Gente alegre doa tudo que a alegria lhe oferece sem economia.
Pessoa feliz sussurra sua felicidade para que não seja invejada.
Gente alegre quer gritar, compartilhar com mais gente possível.
Gente alegre aceita às vezes a tristeza como companhia. A compreende, entende que é visita também, então abraça sua presença com ternura por algum tempo, dialoga com sua dor natural como parte incondicional de seu ser, depois gentilmente pede para que vá embora e volte somente em momentos propícios.
Pessoa feliz teme a tristeza tal qual um horrendo fantasma que deve ser rapidamente exterminado e evitado a todo custo. Não ouve nem uma palavra do que sua própria tristeza tem a lhe dizer e assim amputa uma parte de si mesma por medo de que a conversa lhe convença da fragilidade de sua felicidade.
Alegria é contagiante, felicidade não.
Alegria é muito mais fácil de se reconhecer. Não tem enganos e é quase nula a margem para erros.
Se alguém estiver vestida de alegria é possível enxergar os detalhes no olhar, no riso fácil, no timbre da voz, nos gestos com as mãos, pernas, cabeça. Sem dúvidas você vai saber reconhecer porque vai senti-la. E é bom que tire algum proveito disso.

No entanto uma pessoa que se diz fantasiada de felicidade, apesar de não poder ser contestada, não pode também ser constatada, pois sua fantasia não pode ser comprovada pelos outros. É quase como
aquela história da “roupa nova do rei”, lembra?! O rei havia sido enganado. O fizeram acreditar que ele usava uma roupa linda, perfeita, porém que só ele mesmo ou um grupo seleto de pessoas especiais, providas de capacidades especiais de percepção poderiam ver a tal beleza de suas vestes novas. No entanto, o pobre coitado desfilava ridiculamente pelado por entre as pessoas que não podiam confessar não poderem ver a linda roupa que ele usava, pois se assim fizessem admitiriam serem pessoas comuns, que viam apenas um rei ridículo caminhar nu publicamente gabando-se poder usar uma roupa que ele próprio não era capaz de enxergar e reconhecer. De qualquer maneira, o cara voltava para seu palácio satisfeito e convencido de que se apresentava de forma especial para seus súditos que naturalmente o admiravam.
Ora, fenômeno muito parecido acontece com as pessoas fantasiadas de felicidade, precisam se fazer notar para fazer valer a beleza de sua fantasia.
Já gente vestida de alegria não. Elas sabem que sua roupa foi feita sob medida para seu corpo, não precisa ser bonita, elegante, luxuosa, nada disso. É apenas uma peça de roupa que logo estará no cesto de roupas usadas, misturada a outras peças de roupas usadas esperando para ser levada, depois pendurada no varal para secar e voltar a ser usada quando alguma ocasião permitir.
Gente que tem alegria para vestir não dá a mínima se você pode ou não enxergar as cores da beleza de sua roupa... Gente estranha mesmo.

Agora, de maneira nenhuma estou querendo aqui dizer que uma coisa anula a outra. Ou que o valor de uma se sobrepõe a outra. De jeito nenhum! São diferenças que podem ser reconhecidas por qualquer um com atenção. Também não quero aqui sugerir que gente vestida de alegria não se fantasie de felicidade, mas o contrário me parece improvável, ou seja, alegria sem felicidade é muito possível e confortável até, mas felicidade sem alegria é falso.
No entanto afirmo que fantasia de felicidade e roupa de alegria num mesmo corpo é raridade das mais peculiares. Raro no nível de paixão e amor na mesma medida num único relacionamento: até existe, mas é coisa para dois ou três casais de muita sorte e demanda um tipo de construção quase impossível para a maioria.
Mas aí já é outro assunto...

Alegria é criança inconsequente, serelepe, quer correr e pular, gastar sua energia rápida e intensamente. A felicidade parece ser uma gentil senhora que desfruta de seu tempo com calma e sabedoria, que teme se movimentar demais e acabar caindo sobre as próprias pernas.
De todo modo, se por acaso encontrar uma pessoa feliz e que esteja vestida de alegria, saberá que a primeira coisa que ela poderá lhe oferecer de imediato é sua interpretação de um mundo alegre e de uma vida colorida. E se por acaso, você também estiver usando sua alegria no mesmo momento, a experiência certamente será um interessante acontecimento, digno de ser assistido pelos os outros e depois aplaudido.

Digo isso porque tive a sorte de poder ter experiência de assistir um espetáculo desses. Pude ver muito de perto duas dessa gente vestida de alegria se deliciarem com a vida daquele curto momento. Fiquei perto, me fortalecendo com a alegria delas, me contagiando de tal maneira que passei a fazer parte da coisa. Sem muito esforço eu, que antes estava apenas nu, me vesti também de alegria, alegria emprestada devo dizer, mas alegria.
De volta a minha casa, tratei de abrir as gavetas de roupas, os baús de memórias e o coração em busca de vestígios de alegrias esquecidas. Para meu deleite, atravessei a madrugada me alegrando com antigas alegrias e criando novas para os dias seguintes. Me dei conta de que a busca pela felicidade pode fazer com que esqueçamos as pequenas e imediatas alegrias que já vivemos e as que deixamos passar diariamente. Me dei conta de que é muito mais fácil que pessoas com pouca ou nenhuma alegria para vestir acabem arrancando da gente aquela que naturalmente possuímos, porém embora mais raro, aquelas que tem muitas alegrias para vestir podem oferecer a doação de sua alegria como troca do bom pelo bom. E assim a riqueza de ambos se multiplica.

Como resultado já não me preocupo mais tanto com a busca pela felicidade, quero mesmo é o deleite da alegria, com a maior frequência possível.
Em suma, nada de correr atrás da felicidade, o lance mesmo é correr lado a lado com a alegria.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Impressões sobre a Máquina de Escrever


Por Joe Cruz

Semanas atrás, quis ter uma máquina de escrever. Repare, não quis “muito” nem “sempre”. Apenas quis ter uma máquina de escrever. Coisa recente. E por nenhum motivo especial ou específico, só uma simples e fugaz querença daquelas que é preciso aproveitar logo para que ela não se misture na bagunça do esquecimento de tantas outras coisas que se deseja só por desejar.
Tratei logo de arranjar então uma antes que a vontade efêmera colocasse a si mesma para escanteio. Pesquisa rápida na internet. Não havia muito o que comparar, nem muito tempo para gastar. Comprei a que vi primeiro. Parcela única, produto de baixo custo. A entrega me surpreendeu, três dias! Só pude constatar que o fenômeno da entrega relâmpago se devia ao fato de o produto ter baixíssima procura no mercado. Não por menos. Quem é que quer ter uma máquina de escrever?! Foi o que me perguntei quando fui informado da chegada de uma caixa “grande” endereçada a mim.

Já em casa e devidamente instalada em lugar de destaque na escrivaninha (que durante muito tempo havia sido o lugar de um notebook), a máquina pareceu acomodar-se com certa intimidade, como quem se esparrama confortavelmente numa cama após uma longa e cansativa viagem.
Vendo-a ali, parada e disponível para o que eu fosse capaz de fazer com ela, me dei conta de que eu ainda não sabia nada sobre máquinas de escrever. Ok, sabia o que a maioria de nós sabe: um objeto que possibilita a escrita de palavras que são impressas diretamente numa folha de papel em branco simultaneamente à digitação das teclas. Sim, mas daí saber manusear o tal objeto é uma questão que vai além de saber para o que ele serve.

Não parecia ser tão complicado. Não era preciso montar nem desmontar nada. Não havia nenhuma necessidade de utilizar qualquer ferramenta para fazê-la funcionar: chave de fenda, furadeira, martelo ou parafusos. Era uma questão praticamente intuitiva. 

A máquina ali parada, de frente para mim, parecendo querer me apontar por onde a folha de papel branca deveria ser introduzida. Segui a dica. Intuitivamente também girei a única peça na máquina que possibilitava tal manobra. E com duas ou três voltas a folha em branco estava devidamente ajustada no local de atividade, rente às peças que atenderiam aos comandos das teclas, que por sua vez atenderiam aos comandos de meus dedos, que por sua vez atenderiam aos comandos do meu cérebro.
Tudo agora então era apenas uma questão de um começo, um impulso, uma primeira marca na folha em branco. Depois disso, certamente a potência daquela relação revelaria o teor da nossa “química” e estabeleceria como deveríamos continuar com a experiência.

Claro que em situações como esta, é preciso tentar quebrar o gelo antes que qualquer marca seja de fato fixada. É um momento e tanto! Criar uma marca aonde antes não havia nada. E no caso de uma folha em branco a coisa se torna ainda mais significativa, pois é na candura do papel que será “tatuado” de forma definitiva aquilo que se deseja imprimir. Isso também significa que a marca que será feita naquele espaço vazio é também uma marca que será feita em mim, porque é iniciada enquanto penso e finalizada quando concretizo. E tudo aquilo que se pensa, quando escrito, deixa de ser somente alma para ser também corpo, passa a ser uma alma abrigada, portanto. E assim sendo, deixa também de pertencer somente a mim para fazer parte do mundo, para o mundo de forma objetiva. Ou como bem disse Arthur Schopenhauer (aquele filósofo mal-humorado e pessimista do século XIX), num de seus instrutivos textos, “A arte de escrever”: “A vida autêntica de um pensamento dura até que ele chegue ao ponto em que faz fronteira com as palavras: ali se petrifica, e a partir de então está morto. (...). Quando ele começa a existir para os outros, para de viver em nós...”

É na transformação do abstrato para o concreto que a experiência com a máquina de escrever afirma sua característica fundamental, ou melhor dizendo, intensifica sua particularidade.
Logo no primeiro golpe, fica muito claro perceber que pensar diante duma máquina de escrever não se trata apenas de uma relação isolada com a reflexão solitária ou com a abstração do pensamento descompromissado e aleatório, mas sim, e sobretudo, uma aproximação íntima com a ideia do real, do instantâneo, do definitivo.
A máquina parece exigir o toque, parece querer sentir o golpe para fazer valer sua utilidade e arrancar, quase que violentamente, os pensamentos de seu digitador para transformá-los em palavras tatuadas na folha branca presa entre suas peças frias de metal.

Aqui é quase impossível não estabelecer uma mínima comparação entre a nossa atual relação com a escrita com aquela que tínhamos há algumas décadas.
Os computadores, além de todas as outras vantagens para o desenvolvimento técnico e intelectual humano, ampliaram de forma revolucionária nossa capacidade de lidar com o que escrevemos e como escrevemos. A começar pela facilidade de apagar. A tecla “delete”, sem dúvidas tornou a experiência de escrever muito mais confortável, por assim dizer. Quem já escreveu mais que uma página inteira numa máquina de escrever, sabe do que estou falando!
Escrever, repensar, escrever novamente, pensar melhor e poder rescrever tudo, podendo deletar um parágrafo inteiro se necessário para enfim elaborar um novo sem precisar abusar dos corretores líquidos, nem do vai e vem do papel para ajustá-lo ao ponto ideal após as correções, já é por si só uma grande revolução. Além, é claro, de tornar a lixeira ao lado da escrivaninha, um mero objeto decorativo, o que de fato alivia em muito a consciência pelos descartes de folhas e mais folhas amassadas com menos da metade de seu espaço preenchido.

Tá, tudo bem... Poder errar e apagar quantas vezes necessário sem precisar necessariamente ter uma folha impressa (já marcada e borrada), tornou a coisa mais simples, mais fácil, mais prazerosa, econômica e até ecológica. Mas por outro lado, será que ferramentas desse tipo também não fizeram com que nossas experiências com a escrita ou com qualquer outra forma de fixar nossas marcas pelo mundo, não tenha ficado muito solta, menos preocupada ou até meio descompromissada?
Repara em como a gente tira fotos! Como ouvimos músicas, assistimos vídeos, conversamos pelo WhatsApp...  

Com os efeitos alcançados pela revolução da tecla delete, é natural que já não nos prendamos mais a formas muito rígidas para nos imprimir em algo ou em alguém. Se a marca não está de acordo com aquilo que pretendia expressar, deleto e faço outra. E assim repetidamente até que se esgotem todas as possibilidades. E dessa forma o que se amplia na verdade é a quantidade dos erros e não a qualidade dos acertos. E aqui já não falo mais apenas das alterações na nossa forma de escrever pensamentos em papeis, mas também da nossa forma de inscrever nossa personalidade em pessoas, em coisas, em lugares.

O mundo que alimentamos em nós quer e precisa ser simbolizado, codificado, interpretado e compreendido. Nossas marcas são símbolos que nos traduzem para o mundo, que nos caracteriza para o outro, que nos permite expressar aquilo que, de alguma forma, habita nossa consciência, nossa alma...
Criar meios para que isso seja cada vez melhor expressado e compreendido, tem sido uma das principais motivações para invenções cada vez mais elaboradas com a finalidade de tornar essa experiência algo que valide e afirme nossa noção de identidade.
A tecnologia é e continuará sendo nossa fiel aliada nesse processo. No entanto, isso não significa que o novo invalide a importância do antigo, pois quando se trata da nossa marca simbólica no mundo, a questão não se limita à abordagem técnica, mas se estende à nossa relação afetiva com o mundo. E isso também significa pensar (e sentir) de que maneira somos afetados pelas expressões que não são as nossas.
A arte (os artistas), tem papel fundamental nisso, justamente por refletir o olhar para o mundo que não nos pertence diretamente, mas que mesmo assim, nos representa.
Aqui não são necessárias longas reflexões para atestarmos que os avanços tecnológicos possibilitam uma maior fluidez na nossa relação cotidiana com as expressões artísticas e, por conseguinte, com nosso próprio entendimento sobre elas.

Hoje já não existem mais tantos limites técnicos que nos impeçam de explorar (com melhor qualidade e em maior quantidade) tudo aquilo que consideramos necessário para nos traduzir para o mundo e que traduza o mundo para nós, porém ainda esbarramos nas questões afetivas que isso implica.
A música, sem dúvidas, é uma ótima ilustração para exemplificar isso. Hoje é possível consumir música como jamais antes poderia ser imaginado. Discografias completas ao alcance de clicks. Mp3, Mp4, internet, etc... O que até pouco tempo atrás era preciso ser acumulado em coleções de discos de vinil em baús de madeira, disqueteiras, portas cds, hoje cabe facilmente dentro de um pen drive do tamanho do meu dedo mindinho, onde é possível arquivar a obra completa do Beethoven ou dos Beatles. Se quiser, posso baixar por downloads as “As principais obras eruditas de todos os tempos” ou ainda “os 500 clássicos indispensáveis do Rock n roll”. Posso até devorar Elis Regina, Milton Nascimento, Chico e Caetano num só dia enquanto trabalho!
Fantástico!

É estranho para a maioria de nós imaginar que para ouvir música em quantidade muito menor que ouvimos hoje, fosse necessário quase precisão cirúrgica para manusear delicadamente a agulha do toca-discos para que o disco não arranhasse. O aparelho era especial, ficava num canto legal da casa. Só era acionado em momentos especiais. Comprar um disco de vinil era (ainda é para alguns) praticamente um ritual. Garimpar, folheando disco a disco até encontrar algum tesouro escondido no meio de tantos outros. A embalagem feita de papelão protegida com plástico, impresso nele a capa e contracapa, algumas verdadeiras obras de arte. As letras no encarte, as fotos; o chiado da agulha antes do primeiro som; a finalização do lado A e a manobra para o lado B...! A dificuldade da troca de faixas obrigava o ouvinte a ter mais paciência e calma para ouvir o disco inteiro, dando a ele a chance de apertar ainda mais o laço com a obra e com o artista.
Sem dúvidas, quem já teve a oportunidade de ouvir músicas numa vitrola, sabe que a coisa não se limita a apenas ouvir músicas num aparelho capaz de reproduzi-las repetidamente.


Coisa parecida também acontece com a fotografia...
Quando ainda não era possível tirar milhares de fotos num aparelho que cabe na palma da mão, era preciso aprimorar o olhar para não desperdiçar filmes à toa. Vinte quatro poses, eram vinte e quatro poses e ponto. Nada de deletar e fazer de novo e de novo e de novo... É preciso caprichar na luz, no flash, na mão, no click! Nada de trocar as emoções dos momentos por imagens congeladas numa tela. Nenhuma crítica aqui, nem nostalgia. Só constatação.
Talvez no caso das fotografias a questão da marca seja ainda mais significativa, porque é a ilustração que atende fielmente aquilo que desejamos expor como imagem, tanto de nós mesmos (o que indica nosso entendimento e busca da nossa própria identidade), quanto de paisagens (o que nos aproxima da compreensão do que é o mundo para nós).
Exemplos não faltam... É incrível pensar que seja possível visitarmos os mais importantes museus do mundo e visualizar virtualmente as principais obras de arte do mundo em altíssima resolução e conectarmos com as expressões de artistas que jamais poderiam imaginar coisas do tipo.


Poderíamos aqui refletir largamente a respeito de muitas coisas que facilitam nossa maneira de nos traduzir, expressar, expor e nos conectar com e para o mundo...
O mundo tornou-se mais fácil com a digitalização, porém nem de longe mais simples.
A maciez das teclas, sem dúvidas, suavizou nosso toque no objeto que escreve, mas não alterou em nada a sensibilidade de quem escreve. Escrever é a expressão que conecta cérebro e alma com algum objeto que faça valer o que se pretende simbolizar. Tanto faz se for giz de cera, lápis, caneta ou pedaço de tijolo de construção. O que precisa ser escrito, de alguma forma será marcado. Tatuar folhas em brancos, tela de computador, muros ou corações é a finalidade do escritor. E para isso não são necessárias técnicas especiais nem tecnologias avançadas.

Nossa maior vantagem hoje é poder olhar para o passado e compreender que nossos avanços nos deram o privilégio da escolha. Podemos ouvir músicas numa vitrola para curtir um momento “retrô” , ou num ipad “top de linha”!. Discar números num telefônico fixo com disco giratório só pra saber qual é a sensação de ter que esperar os números girarem até começar a chamada, ou apenas falar o nome do contato para que o celular faça a ligação automaticamente. Podemos surpreender amigos tirando fotos legais e bem selecionadas numa câmera Polaroid antiga, ou disparar centenas de fotos em excelente qualidade no celular Iphone mais foda!
Tudo isso apenas nos indica como fazemos o que necessitamos fazer para nos expressar, mas não o porquê... Os porquês tem mais a ver com alma, carne e sangue do que com plástico, porcas e parafusos. E sendo, que seja muito bem-vinda minha nova máquina para escrever. E que ela arranque de mim muito mais do que palavras e me ofereça sempre, e cada vez mais, muitos motivos para nunca parar de escrever.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Discursos de Crises nos espelhos quebrados da História

Por Joe Cruz

Começar um texto dizendo que o Brasil vive uma crise - seja ela qual for - é de uma falta de originalidade vergonhosa. Uma redundância desnecessária e quase sem nenhum impacto significativo. No entanto, estranhamente, é somente a partir de afirmações como essas que textos como este conseguem explorar melhor o que pretendem em seu desenrolar. Isso não por que a afirmação possa funcionar como uma espécie de senha que dê acesso a outras afirmações de inutilidades semelhantes, mas sim, e sobretudo, porque isso pode criar o movimento necessário para transitar entre os espaços vazios dos discursos batidos e chatos que se ouve todos os dias por todo canto.

Que o país está em crise quase ninguém duvida. Digo “quase ninguém” porque sempre tem alguém com um discurso pronto para tentar demonstrar com argumentos incontestáveis que crises não existem tal e coisa. Mas para o restante a coisa não vai bem. O restante é muita gente. E muita gente tagarelando sobre o mesmo assunto pode tornar um discurso num arsenal de palpites confusos, cheios de sentimentos estranhos que podem variar de uma raiva contida causada pelo excesso de informação, ao mais absoluto ódio provocado pela sensação de se acreditar poder reconhecer de longe onde, quando e o que causa todo o mal que assola as vidas das pessoas por aí.

Todo mundo tem ao menos um palpite. Dia desses, por pura incapacidade de ficar quieto, comentei com um motorista de Uber que provavelmente iria chover forte na parte da tarde. Comentário até oportuno para romper com o silêncio, já que geralmente em março é isso que acontecesse nos finais de tarde. Em menos de dois minutos eu escutava entediado um discurso sobre os males que os últimos governos (federais) causaram ao país. Faz até sentido: começo de ano, verão, clima abafado durante o dia, chuva forte à tarde, maus serviços de escoamento de água, enchentes, ruas alagadas, casas inundadas, pessoas desesperadas... Governo. É uma linha reta (pelo menos no discurso).

Obviamente o fenômeno (dos discursos, não do clima) não se dá somente em interiores de Ubers, mas também em praças de alimentação de shoppings, filas de banco, pontos de ônibus, salas de espera (qualquer uma), salas de professores de escolas - públicas e privadas – (crise que é crise não faz distinção de classe), por aí vai. Isso para não falar ainda das redes sociais (todas)!
 
A questão parece não estar na importância de buscar compreender a que tipo de crise estamos hoje submetidos e como isso pode afetar o cotidiano de maneira geral, mas sim como fortalecer o discurso para torná-lo enfático, ácido, convincente, perturbador...
Aqui é importante tentar separar os dois tipos mais comuns de discursos: um é aquele elaborado pelo especialista. O cara que estudou ciências políticas, ciências sociais, economia, sociologia, história, filosofia, etc. Escreve em colunas de jornais, aparece na televisão, dá palestras e tudo mais. Se ele, com tudo o que sabe, enfatiza a existência de uma crise, então não cabe aos outros duvidar. Este geralmente tem discursos bem embasados em argumentos muito coerentes e gráficos de estatísticas. Comparam o passado com o presente e apontam aonde a coisa vai ficar ainda pior.

O outro é o do não especialista. O formador de opiniões que circula por todo canto sempre preparado para proferir um discurso bem articulado e contundente. Geralmente procuram (e encontram) culpados que não raro são os políticos que ele não votou e fazem parte do “outro grupo” do tipo de gestão pública que ele não aprova. Quando não estão dirigindo ônibus, táxis ou Ubers, estão na internet publicando coisas no facebook, gravando vídeos para o Youtube e/ou escrevendo textos para blogs.

A principal diferença entre esses tipos de discursos é que no primeiro não se entende nada (ou muito pouco) do que se diz, mas percebe-se, pelo modo técnico da exposição, que o cara sabe do que está falando.
No segundo também não se entende muita coisa, mas a desconfiança de que estamos diante de um amontoado de opiniões emocionadas é predominante. E emoção por emoção, o ouvinte pode também emocionar-se e é provável que os discursos se transformem numa discussão acalorada.

De qualquer modo, ainda que não saibamos reconhecer com facilidade os elementos usados para fortalecer as características de cada discurso, não é difícil convencer-nos de que de fato existe uma crise e ela nos afeta diretamente de alguma forma. É fácil também concordarmos que sendo assim, a tal crise só pode ter se originado em nosso decadente sistema político. Isso porque a maioria (ou todos) os assuntos relacionados a uma crise, estão diretamente ligados à gestão pública. Crise nos sistemas de educação, saúde, segurança, economia...

No entanto entender a coisa somente por essa via é baratear demais o debate e limitá-lo a um único rótulo: Crise política. E baratear uma discussão desse calão é enfraquecê-la tornando-a infértil. É perder a oportunidade do exercício da dialética, tão raro...

Que a tal “crise política” seja efeito de um intenso e complexo sistema de corrupção e má gestão de dinheiro público que resultou, resulta e ainda resultará em catastróficos danos à sociedade, não se pode duvidar. Que este também seja o principal motivo para as revoltas populares e a cor mais escura dos discursos enraivecidos, também não há dúvidas. Mas ainda assim, é preciso pensar se a tal crise é isoladamente o motivo da raiva, indignação e temor que se encontra facilmente pelos cantos do país.
Penso que não. Primeiro porque política não se faz por extraterrestres. É feita por pessoas. Gente muito parecida com aquilo estamos acostumados a ver por aí todos os dias e por todo canto. Gente bem parecida com a gente. Gente que, bem ou mal, foi escolhida para representar e zelar pelos interesses da maioria afim de assegurar de algum modo o “bem-estar” coletivo.
Nem precisamos ir muito fundo nisso para intuir que isso se trata de um grande pepino. Qualquer pressuposto que reúna no mesmo contexto as palavras humano, interesses, bem-estar e coletivo, só pode ser um grande problema.
Não há sistema político que dê conta de fazer caber os sentidos dessas coisas numa só. E aqui talvez seja possível afirmar prematuramente que se há uma crise política, há antes disso sua causa primeira: pessoas.
E, se pessoas criam sistemas que são de alguma forma corrompidos por semelhantes a elas, a crise política (ou qualquer outra) é antes de mais nada uma crise do humano dentro de seu contexto social.
O problema é que quando o discurso vai para o “humano” a tendência é o discurso ficar um tanto abstrato. Aliás, muito abstrato. Porque aí começa aquele negócio de “humanidade”. E humanidade é um troço difícil de entender. É muita gente diferente. Diferenças estruturais em todos os sentidos. Entre o tipo humano que desfila nas calçadas da Quinta avenida em Nova Yorque  e a galera que curte o templo de Karni Mata (aquele templo dos ratos!) na Índia, tem uma distância considerável para se levar em conta.

Não dá para pensar em ações humanas sem tentar definir os humanos pelo menos em suas características mais gritantes, aquelas que independem de cultura, meio social, origens... E já nesse pequeno esforço a coisa desanda e nos obriga a enfiar toda espécie num mesmo saco para tentar depois separá-la em pequenos montes de acordo com suas categorias.

Pensar, por exemplo, é uma característica humana gritante, talvez a principal. É a vantagem que nos diferencia e nos distancia dos demais animais. É a capacidade que nos define.
Se todo humano pensa, logo a espécie é dotada de racionalidade. E a razão por sua vez é, por assim dizer, a ferramenta que dispomos para compreender e interpretar o mundo e, na medida do possível (as vezes do impossível), reinventá-lo para tentar dominá-lo. A história da humanidade é marcada por esse esforço.
Reinventar o mundo através da razão é também a capacidade de reinventar a nós mesmos buscando meios para adaptar-nos às próprias mudanças e assim garantirmos a permanência do controle sob o mundo que inventamos e sobre a natureza que modificamos.

Certamente há problemas bem complicados para tentar resolver quando a tônica está evidenciada na pretensão da reinvenção do mundo através da razão. A razão tem seus limites. Tatear o mundo apenas pela via racional encontra problemas já muito bem demonstrado por um monte de gente importante no decorrer da história do pensamento.
Kant, por exemplo, com os seus incompreensíveis (pelo menos para mim) “Crítica da Razão Pura” e “Crítica da Razão Prática”, procurou evidenciar os limites do conhecimento daquilo que se é possível obter dentro do mundo e fora dele também.
O calhamaço dos escritos do metódico professor alemão publicado em 1781, além de sua fundamental e incontestável contribuição à filosofia universal, serve também para nos fazer refletir que muito antes de nós, sabichões contemporâneos, muita gente séria se debruçou incansavelmente em assuntos que hoje mal somos capazes de discutir com alguma competência. Mas mesmo assim o fazemos. E fazemos porque temos espaço e alguma liberdade para isso.

A internet é, por definição, o tempo e o espaço que possibilita a exposição de toda ordem de palpites e opiniões que se tenha interesse em compartilhar. Repara. Falamos de tudo e para todo mundo. Pode até ser que o mundo inteiro não veja o que expomos, mas está lá. Existe a possibilidade.
Escrevo e posto alguma coisa em São Paulo, Brasil e alguém em Xangai, China pode ler e compreender (com a ajuda do tradutor, claro!). E o melhor, se quiser, o chinês ainda pode dar pitacos sobre o que entendeu. Pode discordar, começar uma discussão. Podemos até nos ofender se a coisa ficar feia ou derramarmos elogios exagerados um para outro caso concordemos. Não há limites para o enriquecimento intelectual com as ferramentas disponíveis no mundo virtual. Tudo num mesmo lugar, toda informação necessária ao alcance dos polegares.

Só isso bastaria para nos fazer crer que hoje, mais do que nunca, estamos diante de um mundo sem fronteiras. Aliás, “sem fronteiras” é um ótimo slogan para propagandas que pretendem mostrar que não precisamos mais nos limitar a nada. Limite é coisa do passado. O mundo contemporâneo é aquele que nos alcança e nos encontra aonde quer que estejamos (querendo ou não nos esconder).

Vendo assim, parece não restar nenhuma dúvida de que a revolução provocada pelo surgimento da internet, sobretudo após as redes sociais, ampliou nossa capacidade de compreensão do mundo, nos fornecendo as ferramentas necessárias e fundamentais para uma nova e melhor interpretação sobre nós mesmos.
No entanto, quando buscamos nos enxergar através do espelho de nossa própria história, nos deparamos com os mesmos limites que nos trouxeram até aqui.
O principal deles talvez seja o medo. E aqui o medo não se configura apenas como o reflexo de um limite que não podemos ultrapassar (como o medo da morte, por exemplo), mas também como um mecanismo essencial para nossa própria permanência no mundo; o medo ancestral de não saber lidar com a própria imagem diante do espelho, nos esquivando sempre da imagem crua refletida nele, apontando sempre para o outro lado tudo aquilo que nos aflige, que nos desestabiliza, que nos descentraliza.
O lado oposto é sempre onde se localiza aquilo que não é o bom, correto ou racional. O lado oposto, neste sentido amedrontado, é sempre insensato, incoerente e mal pensando. Depositamos sempre no outro lado tudo aquilo que possa revelar em nós o medo de não sermos aquilo que inventamos como o humano ideal num mundo que também idealizamos.

Dessa forma, sempre fortalecemos o discurso de que o diferente é estranho justamente por ser diferente de mim e daquilo que procuro identificar como a forma ideal para viver a vida de maneira plena.
Tudo fora de mim é estrangeiro e para ajustá-lo ao meu ideal e torná-lo comum, é preciso adaptá-lo à minha própria maneira de me relacionar com tudo o que me cerca. Para que assim o pavor causado pelo desconhecido não me paralise.
Obviamente aqui não precisamos ir muito mais fundo para concordar que se este sentimento é caracteristicamente humano, o jogo de forças provocado entre duas ou mais interpretações diferentes de mundo, só pode resultar em complicadas e infindáveis discussões que denunciam cada vez mais nossa infalível capacidade para odiar aquilo que não harmoniza com nosso olhar. E denuncia ainda que nosso ódio contra aquilo que nos é diferente é sintoma desse medo estrutural que a alma humana sempre teve e sempre terá de olhar diretamente para si mesma.

O medo pelo (novo) mundo que ainda não conhecemos não diminuiu com as vantagens trazidas pela internet ou por qualquer outra tecnologia. Manteve-se intacto, imóvel onde sempre esteve: em nossa consciência.
O fato de termos hoje (mais que em qualquer outra época) mais informações sobre tudo, de nos relacionarmos com mais pessoas, de conhecermos mais lugares e em menos tempo, não afastou em nada nossa angústia pelo desconhecido. Pensando melhor, talvez esse medo tenha se acentuado ainda mais com essas novas possibilidades.

Concentrar hoje nossas insatisfações em discursos longos e chatos sobre uma crise política causada por este ou aquele partido político, nesta ou naquela época, ou em qualquer outro discurso sobre qualquer coisa que desfoque de nossa própria imagem, é mais uma vez a tentativa de apontar para o lado oposto tudo aquilo que não queremos enxergar em nós mesmos.

O mundo que habitamos existe tal como ajudamos a construir diariamente. Não falo apenas de nossa efetiva e obrigatória participação como cidadãos cumpridores de protocolos e afins, mas sim e ainda mais da participação individual que não depende diretamente de nenhum envolvimento político. Aquela que praticamos sozinhos na privacidade de nossas casas, entre as paredes dos prédios das empresas onde trabalhamos, nas carteiras das escolas onde estudamos, nos parques, praias e clubes que frequentamos; no cuidado com nossa própria educação, no zelo por nossa cultura, na exigência com nossa própria ética, com nossa moral e honra.
Falo aqui sobre a participação que tem mais a ver com as resoluções que buscamos intimamente para lidar com nosso mal-estar diante da sociedade, criando diariamente formas para nos relacionar melhor com o mundo.


A crise humana instala-se num mundo que se dissolve diante de nossos olhos. Os espelhos por onde fomos refletidos durante toda a história se despedaçam diante de nós cotidianamente, formando no chão que pisamos o mosaico que compõe nossa nova imagem, reformulada talvez, mas essencialmente semelhante ao que sempre fomos. Os cacos espalhados nos cortam lentamente como se pudéssemos tentar evitar a dor, no entanto o desconforto é latente por se tratar do sofrimento inerente ao humano.
É necessário hoje, talvez mais do que em qualquer outra época, que nossa reinvenção seja feita a partir de uma coragem que talvez nunca tivemos: encararmos a nós mesmos apenas como humanos com toda a carga que isso tem. E com a vantagem de poder carregar na memória todo o rastro da história que nos trouxe até aqui. Assim, talvez não sejamos no futuro menos angustiados do que somos hoje ou que fomos um dia. Porém, certamente criaremos discursos sobre nós mesmos para discursarmos para nós mesmos e no silêncio de nossa própria consciência.