Entre o mundo que habito e o mundo
que habita em mim
Joe Cruz
“Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo”.
O primeiro quarteto do poema “Traduzir-se” de Ferreira Gullar,
consegue através de tão simples e diretas palavras, colocar-nos na mesma
condição do poeta quando este se pôs diante da reflexão de si.
A poesia em sua essência busca a comunicação íntima e sincera com o “fundo
sem fundo” daquele que se dispõe a este corajoso encontro que, através de
uma linguagem particular e especial, estabelece a estreita relação entre o
momento do olhar poético e a verdadeira capacidade do reconhecimento de si como
parte do todo, do mundo. O mundo, neste processo, divide-se em duas partes
sendo uma, a forma com que o sujeito é capaz de concebê-lo como ambiente
limitado a um determinado espaço com suas características físicas; e a outra, o
mundo criado e cultivado dentro de si próprio, como fonte imediata da qualidade
desta interpretação.
Meu Mundo e nada mais...
Neste sentido, nos parece claro que
a concepção do mundo como ambiente, preservando todas as características
físicas como as formas, as cores, medidas, cheiros etc, não são capazes de
fornecer ao sujeito, mais que uma influência indireta, pois esta é dada a todos
em igual proporção, enquanto a outra, de caráter subjetivo, consiste naquilo
que diz respeito estritamente a seu espírito de maneira honesta e genuína e em
harmonia com seus valores e virtudes, estabelecendo assim a diferença
fundamental entre os humanos, pois é concedida pela própria natureza e enquadra
a personalidade de maneira ampla.
A simples observação é capaz de nos oferecer material suficiente para a
constatação de que, dentre as influências no que concerne à satisfação ou
insatisfação na vida humana, a concedida pela natureza é sem dúvidas a que
influencia mais diretamente. Isto porque, utilizando a divisão proposta por
Aristóteles para definir o bem estar da vida em: os fornecidos de fora; os provenientes
da alma; e os do corpo (sendo alma e corpo atributos naturais) é possível
compreender que nada é mais fundamental para o bem estar quanto a boa
disposição do sujeito com relação ao que é inerente à sua própria natureza,
isto é, beleza, saúde, talento, caráter moral, sensibilidade, compreensão,
inteligência, etc. Provido de tal harmonia, até mesmo o momento de solidão
torna-se agradável, pois há o prazer da própria individualidade, livre da
necessidade, comum em nossos dias, de sentir-se pertencente a um meio ou a um
grupo, pois intimamente reconhece que não pertence a lugar nenhum senão à
própria consciência.
Por outro lado, pode-se concluir então que a má disposição resultará num
mal estar mais acentuado sendo comparável à consciência presa ao corpo que não
reconhece; necessita urgentemente de dar cor ao seu tom naturalmente opaco e
sem vida, procurando no ambiente ou nas companhias refúgio para a insatisfação
intrínseca do ser, assemelhando-se assim, ao desespero daquele que experimenta
inutilmente diferentes soluções químicas para curar a doença do corpo, quando
esta se encontra na alma.
No entanto, nem somente “Pela própria natureza” se constitui o
sujeito. A sociedade a qual pertence, pode ser compreendida como o fator capaz
de lhe fornecer sua metade objetiva, assim como é elucidado ainda no “Traduzir-se”
do Gullar:
“Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão”.
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