Por Joe Cruz
Semanas atrás, quis ter
uma máquina de escrever. Repare, não quis
“muito” nem “sempre”. Apenas quis ter uma máquina de escrever. Coisa
recente. E por nenhum motivo especial ou específico, só uma simples e fugaz
querença daquelas que é preciso aproveitar logo para que ela não se misture na
bagunça do esquecimento de tantas outras coisas
que se deseja só por desejar.
Tratei logo de arranjar então
uma antes que a vontade efêmera colocasse a si mesma para escanteio. Pesquisa rápida
na internet. Não havia muito o que comparar, nem muito tempo para gastar.
Comprei a que vi primeiro. Parcela única, produto de baixo custo. A entrega me
surpreendeu, três dias! Só pude constatar que o fenômeno da entrega relâmpago se
devia ao fato de o produto ter baixíssima procura no mercado. Não por menos.
Quem é que quer ter uma máquina de escrever?! Foi o que me perguntei quando fui
informado da chegada de uma caixa
“grande” endereçada a mim.
Já em casa e devidamente
instalada em lugar de destaque na escrivaninha (que durante muito tempo havia
sido o lugar de um notebook), a máquina pareceu acomodar-se com certa
intimidade, como quem se esparrama confortavelmente numa cama após uma longa e
cansativa viagem.
Vendo-a ali, parada e
disponível para o que eu fosse capaz de fazer com ela, me dei conta de que eu
ainda não sabia nada sobre máquinas de escrever. Ok, sabia o que a maioria de
nós sabe: um objeto que possibilita a escrita de palavras que são impressas
diretamente numa folha de papel em branco simultaneamente à digitação das
teclas. Sim, mas daí saber manusear o tal objeto é uma questão que vai além de
saber para o que ele serve.
Não parecia ser tão
complicado. Não era preciso montar nem desmontar nada. Não havia nenhuma
necessidade de utilizar qualquer ferramenta para fazê-la funcionar: chave de
fenda, furadeira, martelo ou parafusos. Era uma questão praticamente intuitiva.
A máquina ali parada, de
frente para mim, parecendo querer me apontar por onde a folha de papel branca
deveria ser introduzida. Segui a dica. Intuitivamente também girei a única peça
na máquina que possibilitava tal manobra. E com duas ou três voltas a folha em
branco estava devidamente ajustada no local de atividade, rente às peças que
atenderiam aos comandos das teclas, que por sua vez atenderiam aos comandos de
meus dedos, que por sua vez atenderiam aos comandos do meu cérebro.
Tudo agora então era
apenas uma questão de um começo, um impulso, uma primeira marca na folha em
branco. Depois disso, certamente a potência daquela relação revelaria o teor da
nossa “química” e estabeleceria como
deveríamos continuar com a experiência.
Claro que em situações
como esta, é preciso tentar quebrar o
gelo antes que qualquer marca seja de fato fixada. É um momento e tanto!
Criar uma marca aonde antes não havia nada. E no caso de uma folha em branco a
coisa se torna ainda mais significativa, pois é na candura do papel que será “tatuado” de forma definitiva aquilo que
se deseja imprimir. Isso também significa que a marca que será feita naquele
espaço vazio é também uma marca que será feita em mim, porque é iniciada
enquanto penso e finalizada quando concretizo. E tudo aquilo que se pensa,
quando escrito, deixa de ser somente alma para ser também corpo, passa a ser uma
alma abrigada, portanto. E assim sendo, deixa também de pertencer somente a mim
para fazer parte do mundo, para o mundo de forma objetiva. Ou como bem disse Arthur
Schopenhauer (aquele filósofo mal-humorado
e pessimista do século XIX), num de seus instrutivos textos, “A arte de escrever”: “A vida autêntica de um
pensamento dura até que ele chegue ao ponto em que faz fronteira com as
palavras: ali se petrifica, e a partir de então está morto. (...). Quando ele
começa a existir para os outros, para de viver em nós...”
É na transformação do
abstrato para o concreto que a experiência com a máquina de escrever afirma sua
característica fundamental, ou melhor dizendo, intensifica sua particularidade.
Logo no primeiro golpe, fica muito claro perceber que
pensar diante duma máquina de escrever não se trata apenas de uma relação
isolada com a reflexão solitária ou com a abstração do pensamento
descompromissado e aleatório, mas sim, e sobretudo, uma aproximação íntima com
a ideia do real, do instantâneo, do definitivo.
A máquina parece exigir o
toque, parece querer sentir o golpe para fazer valer sua utilidade e arrancar,
quase que violentamente, os pensamentos de seu digitador para transformá-los em
palavras tatuadas na folha branca presa entre suas peças frias de metal.
Aqui é quase impossível não
estabelecer uma mínima comparação entre a nossa atual relação com a escrita com
aquela que tínhamos há algumas décadas.
Os computadores, além de
todas as outras vantagens para o desenvolvimento técnico e intelectual humano,
ampliaram de forma revolucionária nossa capacidade de lidar com o que
escrevemos e como escrevemos. A começar pela facilidade de apagar. A tecla “delete”, sem dúvidas tornou a
experiência de escrever muito mais confortável, por assim dizer. Quem já
escreveu mais que uma página inteira numa máquina de escrever, sabe do que
estou falando!
Escrever, repensar,
escrever novamente, pensar melhor e poder rescrever tudo, podendo deletar um parágrafo inteiro se
necessário para enfim elaborar um novo sem precisar abusar dos corretores
líquidos, nem do vai e vem do papel para ajustá-lo ao ponto ideal após as
correções, já é por si só uma grande revolução. Além, é claro, de tornar a lixeira
ao lado da escrivaninha, um mero objeto decorativo, o que de fato alivia em
muito a consciência pelos descartes de folhas e mais folhas amassadas com menos
da metade de seu espaço preenchido.
Tá, tudo bem... Poder
errar e apagar quantas vezes necessário sem precisar necessariamente ter uma
folha impressa (já marcada e borrada),
tornou a coisa mais simples, mais fácil, mais prazerosa, econômica e até
ecológica. Mas por outro lado, será que ferramentas desse tipo também não
fizeram com que nossas experiências com a escrita ou com qualquer outra forma
de fixar nossas marcas pelo mundo, não tenha ficado muito solta, menos
preocupada ou até meio descompromissada?
Repara em como a gente
tira fotos! Como ouvimos músicas, assistimos vídeos, conversamos pelo WhatsApp...
Com os efeitos alcançados
pela revolução da tecla delete, é
natural que já não nos prendamos mais a formas muito rígidas para nos imprimir em algo ou em alguém. Se a
marca não está de acordo com aquilo que pretendia expressar, deleto e faço
outra. E assim repetidamente até que se esgotem todas as possibilidades. E
dessa forma o que se amplia na verdade é a quantidade dos erros e não a
qualidade dos acertos. E aqui já não falo mais apenas das alterações na nossa
forma de escrever pensamentos em papeis, mas também da nossa forma de inscrever
nossa personalidade em pessoas, em coisas, em lugares.
O mundo que alimentamos em
nós quer e precisa ser simbolizado, codificado, interpretado e compreendido.
Nossas marcas são símbolos que nos traduzem para o mundo, que nos caracteriza
para o outro, que nos permite expressar aquilo que, de alguma forma, habita nossa
consciência, nossa alma...
Criar meios para que isso
seja cada vez melhor expressado e compreendido, tem sido uma das principais
motivações para invenções cada vez mais elaboradas com a finalidade de tornar
essa experiência algo que valide e afirme nossa noção de identidade.
A tecnologia é e
continuará sendo nossa fiel aliada nesse processo. No entanto, isso não
significa que o novo invalide a
importância do antigo, pois quando se trata da nossa marca simbólica no mundo, a questão não se limita à abordagem
técnica, mas se estende à nossa relação afetiva com o mundo. E isso também significa
pensar (e sentir) de que maneira somos afetados pelas expressões que não são as
nossas.
A arte (os artistas), tem
papel fundamental nisso, justamente por refletir o olhar para o mundo que não
nos pertence diretamente, mas que mesmo assim, nos representa.
Aqui não são necessárias
longas reflexões para atestarmos que os avanços tecnológicos possibilitam uma maior
fluidez na nossa relação cotidiana com as expressões artísticas e, por
conseguinte, com nosso próprio entendimento sobre elas.
Hoje já não existem mais
tantos limites técnicos que nos impeçam de explorar (com melhor qualidade e em
maior quantidade) tudo aquilo que consideramos necessário para nos traduzir
para o mundo e que traduza o mundo para nós, porém ainda esbarramos nas
questões afetivas que isso implica.
A música, sem dúvidas, é
uma ótima ilustração para exemplificar isso. Hoje é possível consumir música
como jamais antes poderia ser imaginado. Discografias completas ao alcance de
clicks. Mp3, Mp4, internet, etc... O que até pouco tempo atrás era preciso ser
acumulado em coleções de discos de vinil em baús de madeira, disqueteiras,
portas cds, hoje cabe facilmente dentro de um pen drive do tamanho do meu dedo
mindinho, onde é possível arquivar a obra completa do Beethoven ou dos Beatles.
Se quiser, posso baixar por downloads as “As
principais obras eruditas de todos os tempos” ou ainda “os 500 clássicos indispensáveis do Rock n roll”. Posso até devorar
Elis Regina, Milton Nascimento, Chico e
Caetano num só dia enquanto trabalho!
Fantástico!
É estranho para a maioria
de nós imaginar que para ouvir música em quantidade muito menor que ouvimos hoje,
fosse necessário quase precisão cirúrgica para manusear delicadamente a agulha
do toca-discos para que o disco não arranhasse. O aparelho era especial, ficava
num canto legal da casa. Só era acionado em momentos especiais. Comprar um
disco de vinil era (ainda é para alguns) praticamente um ritual. Garimpar,
folheando disco a disco até encontrar algum tesouro escondido no meio de tantos
outros. A embalagem feita de papelão protegida com plástico, impresso nele a
capa e contracapa, algumas verdadeiras obras de arte. As letras no encarte, as
fotos; o chiado da agulha antes do primeiro som; a finalização do lado A e a
manobra para o lado B...! A dificuldade da troca de faixas obrigava o ouvinte a
ter mais paciência e calma para ouvir o disco inteiro, dando a ele a chance de
apertar ainda mais o laço com a obra e com o artista.
Sem dúvidas, quem já teve
a oportunidade de ouvir músicas numa vitrola, sabe que a coisa não se limita a
apenas ouvir músicas num aparelho capaz de reproduzi-las repetidamente.
Coisa parecida também
acontece com a fotografia...
Quando ainda não era possível
tirar milhares de fotos num aparelho que cabe na palma da mão, era preciso
aprimorar o olhar para não desperdiçar filmes à toa. Vinte quatro poses, eram
vinte e quatro poses e ponto. Nada de deletar
e fazer de novo e de novo e de novo... É preciso caprichar na luz, no
flash, na mão, no click! Nada de trocar as emoções dos momentos por imagens
congeladas numa tela. Nenhuma crítica aqui, nem nostalgia. Só constatação.
Talvez no caso das fotografias
a questão da marca seja ainda mais
significativa, porque é a ilustração que atende fielmente aquilo que desejamos
expor como imagem, tanto de nós mesmos (o que indica nosso entendimento e busca
da nossa própria identidade), quanto de paisagens (o que nos aproxima da
compreensão do que é o mundo para nós).
Exemplos não faltam... É
incrível pensar que seja possível visitarmos os mais importantes museus do
mundo e visualizar virtualmente as principais obras de arte do mundo em
altíssima resolução e conectarmos com as expressões de artistas que jamais
poderiam imaginar coisas do tipo.
Poderíamos aqui refletir
largamente a respeito de muitas coisas que facilitam nossa maneira de nos traduzir, expressar, expor e nos conectar com e para o mundo...
O mundo tornou-se mais fácil com a digitalização, porém nem de
longe mais simples.
A maciez das teclas, sem
dúvidas, suavizou nosso toque no objeto que escreve, mas não alterou em nada a
sensibilidade de quem escreve. Escrever é a expressão que conecta cérebro e alma
com algum objeto que faça valer o que se pretende simbolizar. Tanto faz se for
giz de cera, lápis, caneta ou pedaço de tijolo de construção. O que precisa ser
escrito, de alguma forma será marcado. Tatuar folhas em brancos, tela de
computador, muros ou corações é a finalidade do escritor. E para isso não são
necessárias técnicas especiais nem tecnologias avançadas.
Nossa maior vantagem hoje
é poder olhar para o passado e compreender que nossos avanços nos deram o
privilégio da escolha. Podemos ouvir músicas numa vitrola para curtir um
momento “retrô” , ou num ipad “top de linha”!. Discar números num
telefônico fixo com disco giratório só pra saber qual é a sensação de ter que esperar
os números girarem até começar a chamada, ou apenas falar o nome do contato para
que o celular faça a ligação automaticamente. Podemos surpreender amigos tirando
fotos legais e bem selecionadas numa câmera Polaroid
antiga, ou disparar centenas de fotos em excelente qualidade no celular Iphone mais foda!
Tudo isso apenas nos
indica como fazemos o que
necessitamos fazer para nos expressar, mas não o porquê... Os porquês tem mais
a ver com alma, carne e sangue do que com plástico, porcas e parafusos. E sendo, que seja
muito bem-vinda minha nova máquina para escrever. E que ela arranque de mim muito
mais do que palavras e me ofereça sempre, e cada vez mais, muitos motivos para nunca
parar de escrever.
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