Por Joe Cruz
Começar um texto dizendo
que o Brasil vive uma crise - seja ela qual for - é de uma falta de
originalidade vergonhosa. Uma redundância desnecessária e quase sem nenhum impacto
significativo. No entanto, estranhamente, é somente a partir de afirmações como
essas que textos como este conseguem explorar melhor o que pretendem em seu
desenrolar. Isso não por que a afirmação possa funcionar como uma espécie de
senha que dê acesso a outras afirmações de inutilidades semelhantes, mas sim, e
sobretudo, porque isso pode criar o movimento necessário para transitar entre
os espaços vazios dos discursos batidos e chatos que se ouve todos os dias por
todo canto.
Que o país está em crise
quase ninguém duvida. Digo “quase
ninguém” porque sempre tem alguém com um discurso pronto para tentar demonstrar com argumentos incontestáveis que
crises não existem tal e coisa. Mas para o restante a coisa não vai bem. O
restante é muita gente. E muita gente tagarelando sobre o mesmo assunto pode
tornar um discurso num arsenal de palpites confusos, cheios de sentimentos
estranhos que podem variar de uma raiva contida causada pelo excesso de informação,
ao mais absoluto ódio provocado pela sensação de se acreditar poder reconhecer
de longe onde, quando e o que causa todo o mal que assola as vidas das pessoas por aí.
Todo mundo tem ao menos um
palpite. Dia desses, por pura incapacidade de ficar quieto, comentei com um motorista de Uber que provavelmente iria chover forte na parte da tarde.
Comentário até oportuno para romper com o silêncio, já que geralmente em março é isso que acontecesse nos finais de tarde. Em menos de dois minutos
eu escutava entediado um discurso sobre os males que os últimos governos (federais)
causaram ao país. Faz até sentido: começo de ano, verão, clima abafado durante
o dia, chuva forte à tarde, maus serviços de escoamento de água, enchentes,
ruas alagadas, casas inundadas, pessoas desesperadas... Governo. É uma linha
reta (pelo menos no discurso).
Obviamente o fenômeno (dos
discursos, não do clima) não se dá somente em interiores de Ubers, mas também
em praças de alimentação de shoppings, filas de banco, pontos de ônibus, salas
de espera (qualquer uma), salas de professores de escolas - públicas e privadas
– (crise que é crise não faz distinção de classe), por aí vai. Isso para não
falar ainda das redes sociais (todas)!
A questão parece não estar
na importância de buscar compreender
a que tipo de crise estamos hoje submetidos e como isso pode afetar o cotidiano
de maneira geral, mas sim como fortalecer o discurso para torná-lo enfático, ácido,
convincente, perturbador...
Aqui é importante tentar
separar os dois tipos mais comuns de discursos: um é aquele elaborado pelo especialista.
O cara que estudou ciências políticas, ciências sociais, economia, sociologia,
história, filosofia, etc. Escreve em colunas de jornais, aparece na televisão,
dá palestras e tudo mais. Se ele, com tudo o que sabe, enfatiza a existência de
uma crise, então não cabe aos outros duvidar. Este geralmente tem discursos bem
embasados em argumentos muito coerentes e gráficos de estatísticas. Comparam o passado
com o presente e apontam aonde a coisa vai ficar ainda pior.
O outro é o do não
especialista. O formador de opiniões que circula por todo canto sempre preparado
para proferir um discurso bem articulado e contundente. Geralmente procuram (e
encontram) culpados que não raro são os políticos que ele não votou e fazem
parte do “outro grupo” do tipo de
gestão pública que ele não aprova. Quando não estão dirigindo ônibus, táxis ou
Ubers, estão na internet publicando coisas no facebook, gravando vídeos para o
Youtube e/ou escrevendo textos para blogs.
A principal diferença
entre esses tipos de discursos é que no primeiro não se entende nada (ou muito
pouco) do que se diz, mas percebe-se, pelo modo técnico da exposição, que o
cara sabe do que está falando.
No segundo também não se entende
muita coisa, mas a desconfiança de que estamos diante de um amontoado de opiniões emocionadas é predominante. E
emoção por emoção, o ouvinte pode também emocionar-se e é provável que os
discursos se transformem numa discussão acalorada.
De qualquer modo, ainda
que não saibamos reconhecer com facilidade os elementos usados para fortalecer
as características de cada discurso, não é difícil convencer-nos de que de fato
existe uma crise e ela nos afeta diretamente de alguma forma. É fácil também
concordarmos que sendo assim, a tal crise só pode ter se originado em nosso
decadente sistema político. Isso porque a maioria (ou todos) os assuntos
relacionados a uma crise, estão diretamente ligados à gestão pública. Crise nos
sistemas de educação, saúde, segurança, economia...
No entanto entender a
coisa somente por essa via é baratear demais o debate e limitá-lo a um único
rótulo: Crise política. E baratear
uma discussão desse calão é enfraquecê-la tornando-a infértil. É perder a oportunidade do exercício da dialética, tão raro...
Que a tal “crise política” seja efeito de um
intenso e complexo sistema de corrupção e má gestão de dinheiro público que
resultou, resulta e ainda resultará em catastróficos danos à sociedade, não se
pode duvidar. Que este também seja o principal motivo para as revoltas
populares e a cor mais escura dos discursos enraivecidos, também não há
dúvidas. Mas ainda assim, é preciso pensar se a tal crise é isoladamente o motivo da
raiva, indignação e temor que se encontra facilmente pelos cantos do país.
Penso que não. Primeiro
porque política não se faz por extraterrestres. É feita por pessoas. Gente
muito parecida com aquilo estamos acostumados a ver por aí todos os dias e por
todo canto. Gente bem parecida com a gente. Gente que, bem ou mal, foi
escolhida para representar e zelar pelos interesses da maioria afim de
assegurar de algum modo o “bem-estar”
coletivo.
Nem precisamos ir muito fundo
nisso para intuir que isso se trata de um grande pepino. Qualquer pressuposto
que reúna no mesmo contexto as palavras humano,
interesses, bem-estar e coletivo, só pode ser um grande problema.
Não há sistema político que
dê conta de fazer caber os sentidos dessas coisas numa só. E aqui talvez seja
possível afirmar prematuramente que se há uma crise política, há antes disso
sua causa primeira: pessoas.
E, se pessoas criam
sistemas que são de alguma forma corrompidos por semelhantes a elas, a crise
política (ou qualquer outra) é antes de mais nada uma crise do humano dentro de seu contexto social.
O problema é que quando o
discurso vai para o “humano” a tendência
é o discurso ficar um tanto abstrato. Aliás, muito abstrato. Porque aí começa
aquele negócio de “humanidade”. E
humanidade é um troço difícil de entender. É muita gente diferente. Diferenças
estruturais em todos os sentidos. Entre o tipo humano que desfila nas calçadas
da Quinta avenida em Nova Yorque e a galera que curte o templo de Karni
Mata (aquele templo dos ratos!) na
Índia, tem uma distância considerável para se levar em conta.
Não dá para pensar em
ações humanas sem tentar definir os humanos pelo menos em suas características
mais gritantes, aquelas que independem de cultura, meio social, origens... E já
nesse pequeno esforço a coisa desanda e nos obriga a enfiar toda espécie num
mesmo saco para tentar depois separá-la em pequenos montes de acordo com suas categorias.
Pensar, por
exemplo, é uma característica humana gritante, talvez a principal. É a vantagem que nos diferencia e nos
distancia dos demais animais. É a capacidade que nos define.
Se todo humano pensa, logo
a espécie é dotada de racionalidade. E a razão por sua vez é, por assim dizer, a
ferramenta que dispomos para compreender e interpretar o mundo e, na medida do
possível (as vezes do impossível),
reinventá-lo para tentar dominá-lo. A história da humanidade é marcada por esse
esforço.
Reinventar o mundo através
da razão é também a capacidade de reinventar a nós mesmos buscando meios para adaptar-nos
às próprias mudanças e assim garantirmos a permanência do controle sob o mundo
que inventamos e sobre a natureza que
modificamos.
Certamente há problemas bem
complicados para tentar resolver quando a tônica está evidenciada na pretensão
da reinvenção do mundo através da razão. A razão tem seus limites. Tatear o
mundo apenas pela via racional encontra problemas já muito bem demonstrado por
um monte de gente importante no decorrer da história do pensamento.
Kant, por exemplo, com os
seus incompreensíveis (pelo menos para mim) “Crítica
da Razão Pura” e “Crítica da Razão Prática”, procurou evidenciar os limites
do conhecimento daquilo que se é possível obter dentro do mundo e fora dele
também.
O calhamaço dos escritos
do metódico professor alemão publicado em 1781,
além de sua fundamental e incontestável contribuição à filosofia universal,
serve também para nos fazer refletir que muito antes de nós, sabichões
contemporâneos, muita gente séria se debruçou incansavelmente em assuntos que
hoje mal somos capazes de discutir com alguma competência. Mas mesmo assim o
fazemos. E fazemos porque temos espaço e alguma liberdade para isso.
A internet é, por
definição, o tempo e o espaço que
possibilita a exposição de toda ordem de palpites e opiniões que se tenha
interesse em compartilhar. Repara. Falamos de tudo e para todo mundo. Pode até
ser que o mundo inteiro não veja o que expomos, mas está lá. Existe a
possibilidade.
Escrevo e posto alguma coisa em São Paulo, Brasil e alguém em Xangai, China pode ler e compreender (com a ajuda do tradutor, claro!). E o melhor, se quiser, o chinês ainda pode dar pitacos sobre o que entendeu. Pode discordar, começar uma discussão. Podemos até nos ofender se a coisa ficar feia ou derramarmos elogios exagerados um para outro caso concordemos. Não há limites para o enriquecimento intelectual com as ferramentas disponíveis no mundo virtual. Tudo num mesmo lugar, toda informação necessária ao alcance dos polegares.
Escrevo e posto alguma coisa em São Paulo, Brasil e alguém em Xangai, China pode ler e compreender (com a ajuda do tradutor, claro!). E o melhor, se quiser, o chinês ainda pode dar pitacos sobre o que entendeu. Pode discordar, começar uma discussão. Podemos até nos ofender se a coisa ficar feia ou derramarmos elogios exagerados um para outro caso concordemos. Não há limites para o enriquecimento intelectual com as ferramentas disponíveis no mundo virtual. Tudo num mesmo lugar, toda informação necessária ao alcance dos polegares.
Só isso bastaria para nos
fazer crer que hoje, mais do que nunca, estamos diante de um mundo sem fronteiras. Aliás, “sem fronteiras” é um ótimo slogan para
propagandas que pretendem mostrar que não precisamos mais nos limitar a nada. Limite é coisa do passado. O mundo
contemporâneo é aquele que nos alcança e nos encontra aonde quer que estejamos
(querendo ou não nos esconder).
Vendo assim, parece não
restar nenhuma dúvida de que a revolução provocada pelo surgimento da internet,
sobretudo após as redes sociais, ampliou nossa capacidade de compreensão do
mundo, nos fornecendo as ferramentas necessárias e fundamentais para uma nova e
melhor interpretação sobre nós mesmos.
No entanto, quando
buscamos nos enxergar através do espelho de nossa própria história, nos
deparamos com os mesmos limites que nos trouxeram até aqui.
O principal deles talvez
seja o medo. E aqui o medo não se configura apenas como o
reflexo de um limite que não podemos ultrapassar (como o medo da morte, por
exemplo), mas também como um mecanismo essencial para nossa própria permanência
no mundo; o medo ancestral de não saber lidar com a própria imagem diante do
espelho, nos esquivando sempre da imagem crua refletida nele, apontando sempre
para o outro lado tudo aquilo que nos aflige, que nos desestabiliza, que nos
descentraliza.
O lado oposto é sempre
onde se localiza aquilo que não é o bom, correto
ou racional. O lado oposto, neste sentido amedrontado, é sempre insensato, incoerente e mal pensando. Depositamos sempre no outro lado tudo aquilo que possa revelar
em nós o medo de não sermos aquilo que inventamos como o humano ideal num mundo que também idealizamos.
Dessa forma, sempre fortalecemos
o discurso de que o diferente é estranho justamente por ser diferente de mim e
daquilo que procuro identificar como a
forma ideal para viver a vida de maneira plena.
Tudo fora de mim é estrangeiro e para ajustá-lo ao meu
ideal e torná-lo comum, é preciso
adaptá-lo à minha própria maneira de me relacionar com tudo o que me cerca. Para que assim o pavor causado pelo desconhecido não me paralise.
Obviamente aqui não
precisamos ir muito mais fundo para concordar que se este sentimento é
caracteristicamente humano, o jogo de forças provocado entre duas ou mais
interpretações diferentes de mundo, só pode resultar em complicadas e infindáveis
discussões que denunciam cada vez mais nossa infalível capacidade para odiar aquilo que
não harmoniza com nosso olhar. E denuncia ainda que nosso ódio contra aquilo
que nos é diferente é sintoma desse medo estrutural que a alma humana sempre
teve e sempre terá de olhar diretamente para si mesma.
O medo pelo (novo) mundo que
ainda não conhecemos não diminuiu com as vantagens trazidas pela internet ou por
qualquer outra tecnologia. Manteve-se intacto, imóvel onde sempre esteve: em nossa consciência.
O fato de termos hoje
(mais que em qualquer outra época) mais informações sobre tudo, de nos
relacionarmos com mais pessoas, de conhecermos mais lugares e em menos tempo,
não afastou em nada nossa angústia pelo desconhecido. Pensando melhor, talvez
esse medo tenha se acentuado ainda mais com essas novas possibilidades.
Concentrar hoje nossas
insatisfações em discursos longos e chatos sobre uma crise política causada por este ou aquele partido político, nesta
ou naquela época, ou em qualquer outro discurso sobre qualquer coisa que desfoque
de nossa própria imagem, é mais uma vez a tentativa de apontar para o lado
oposto tudo aquilo que não queremos enxergar em nós mesmos.
O mundo que habitamos
existe tal como ajudamos a construir diariamente. Não falo apenas de nossa
efetiva e obrigatória participação como cidadãos cumpridores de protocolos e
afins, mas sim e ainda mais da participação individual que não depende
diretamente de nenhum envolvimento político. Aquela que praticamos sozinhos na
privacidade de nossas casas, entre as paredes dos prédios das empresas onde
trabalhamos, nas carteiras das escolas onde estudamos, nos parques, praias e
clubes que frequentamos; no cuidado com nossa própria educação, no zelo por
nossa cultura, na exigência com nossa própria ética, com nossa moral e honra.
Falo aqui sobre a participação
que tem mais a ver com as resoluções que buscamos intimamente para lidar com nosso mal-estar diante da sociedade, criando diariamente formas
para nos relacionar melhor com o mundo.
A crise humana instala-se
num mundo que se dissolve diante de nossos olhos. Os espelhos por onde fomos
refletidos durante toda a história se despedaçam diante de nós cotidianamente,
formando no chão que pisamos o mosaico que compõe nossa nova imagem,
reformulada talvez, mas essencialmente semelhante ao que sempre fomos. Os cacos espalhados nos cortam lentamente como se pudéssemos tentar evitar a dor, no entanto o desconforto
é latente por se tratar do sofrimento inerente ao humano.
É necessário hoje, talvez
mais do que em qualquer outra época, que nossa reinvenção seja feita a partir
de uma coragem que talvez nunca tivemos: encararmos a nós mesmos apenas como
humanos com toda a carga que isso tem. E com a vantagem de poder carregar na
memória todo o rastro da história que nos trouxe até aqui. Assim, talvez não sejamos
no futuro menos angustiados do que somos hoje ou que fomos um dia. Porém,
certamente criaremos discursos sobre nós mesmos para discursarmos para nós
mesmos e no silêncio de nossa própria consciência.
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