Uma pausa para um cafezinho! Uma conversa à toa para desbanalizar o dia a dia... Um espaço e um momento solto no ar, preso no olhar inutilmente essencial.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

S.O.S a Sós (Suspiros da consciência no leito da Solidão)

Por Joe Cruz
(Parte 1)

Em 1979, numa entrevista ao programa Vox Populi da TV Cultura, quando perguntado o motivo de temer a solidão, Chico Buarque então com pouco mais de trinta anos, responde reflexivo, com o típico olhar trágico de quem compreende o peso por trás da obviedade da resposta e dispara sem titubear: “- Porque solidão tem a ver com a morte...” Depois de sua sentença, a sala parece ter sido tomada por um silêncio frio, desconfortável, como se aquela constatação merecesse algum tempo para o devido processamento.
Chico não revela nenhuma nova consciência arrebatadora. Não há em sua resposta rápida e objetiva nenhum juízo que, de alguma forma, já não intuamos. No entanto, é inevitável que sintamos o calafrio provocado pela naturalidade da coisa.

Pensar em solidão não é lá das atividades mais agradáveis que se pretenda investir tempo. Mas é provável que a maioria de nós (mesmo que sem querer) já tenha se deparado com a ideia de um possível deslocamento do meio social para um isolamento individual e particular. E é também provável que nesta situação tenhamos sido levados a lidar com o esforço em explorar alguma definição para a palavra solidão. Óbvio que a palavra não trás nela mesma nenhum significado surpreendente, além da incrível versatilidade para rimas! Porém sugere em seus possíveis sentidos, noções de temperamentos que geralmente estão relacionados a uma interpretação negativa do mundo como a depressão, o pessimismo ou a melancolia. E neste caso, o Chico com sua resposta vai ao extremo da aflição angustiante que nos aterroriza diante da ideia de solidão: a morte em vida.
Mas é claro, isso não precisa ser pensado dessa forma. E a meu ver, nem deve.

Se por um lado somos acometidos pelo temor da constatação de que a solidão tem alguma coisa a ver com a morte, por outro pode ser bem encorajador o efeito causado pela compreensão de que ela também tem (muito) a ver com a vida em seu sentido mais amplo. E aqui é importante que fujamos daquele papo do “copo meio cheio ou meio vazio”. A questão também deve tentar escapar do “bem ou mal”.
Em questões deste calão, é necessário estar além das clássicas dicotomias. Existe aqui um necessário “ser e não ser”, um “bem e mal”...

Os efeitos mais verdadeiros que se tem à luz da solidão estão justamente entre as percepções que se pode ter sobre vida e morte. E, portanto as duas interpretações estão necessária e intimamente ligadas durante o aprofundamento dos sentimentos que envolvem o momento solitário. Aqui, as duas pretendem dançar uma mesma música como um par que almeja a sincronia perfeita entre seus movimentos para criar assim um ritmo peculiar e de rara beleza natural.
A solidão deve se distanciar do julgamento de ser ou não produtiva, mas sim tentar se aproximar ao máximo do entendimento de que se trata de um espaço vazio que será preenchido com aquilo que melhor nos traduz  e assim promover o valor e a qualidade que lhe cabe.
É dessa forma que as atividades que mais nos agradam quando estamos sós, revelam mais sobre nossa essência do que aquelas que são ditadas por grupos de pessoas ou pelo automatismo da rotina, pois se derivam exclusivamente de nossas escolhas sem influências ou interferências externas.

A leitura concentrada de um bom livro, a audição atenta de uma música, o deleite no desenvolver de uma escrita, por exemplo, demonstra a natureza introspectiva de uma pessoa que poderá descobrir grande valor em seus momentos de solidão.
Por outro lado, a facilidade para entretenimento de fácil envolvimento como por programas de televisão ou distrações simples, pode demonstrar a natureza leviana de uma pessoa que entende que o espaço vazio proposto pela solidão deve ser preenchido pela passagem rápida do tempo, de forma que o esquive do tédio.
Em nenhuma das situações é possível afirmar o caráter positivo ou negativo do momento. 
No entanto, ainda assim, é possível ao menos qualificar o momento e identificar quais virtudes podem fazer dele uma oportunidade de elevação individual através de suas possibilidades de aprofundamento, de modo a permitir que o encontro com a solidão inspire a intimidade necessária para o florescer daquilo que vive somente em nós, em cantos de difícil acesso da nossa personalidade, em locais escuros e escondidos de nossa consciência.
Neste sentido, é quando a solidão pode indicar direções para o processo criativo; é quando o contato com as artes e o nosso próprio entendimento sobre elas podem encontrar a sintonia necessária para o desenvolvimento tanto para a apreciação quanto para a produção artística.

A intensidade do momento ficará somente a mercê da quantidade de verdade que somos capazes de investir nele. E este investimento por sua vez dependerá unicamente da coragem que dispomos para encará-lo.

Coragem para encontrar a si mesmo em seu estado mais cru, afirmando a cada segundo a autonomia de toda a subjetividade que envolve o momento, expondo com nitidez toda a nudez com a forma que lhe é própria diante apenas dos próprios olhos, vulnerável ao desconforto e ao frio até que se possa aos poucos aquecer a si mesmo e assim aconchegar-se no seu próprio ser, independente do que isso significa, independente no que isso possa resultar ou revelar.
Este “aos poucos” não acontece se não for através da música que embala a dança ritmada pelos movimentos de intimidade entre a vida e a morte, entre o bem e o mal... E aqui talvez seja possível questionar que em momentos assim, não se sabe ao certo se o que se teme é a morte ou a vida, ou as duas coisas juntas.

Neste movimento é possível também imaginar o temível abismo diante de uma alta montanha que somente poderá ser encarado por aqueles que são capazes de subir até o cume.
A corajosa, cansativa e solitária caminhada até o cume certamente nos faz compreender o quão assustador pode ser a proximidade com o abismo. No entanto, simultaneamente, nos apresenta o quão transformadora pode ser a experiência diante da vastidão frente aos horizontes que se pode enxergar do alto.
Me parece que aqui todo o movimento que se empreende são esforços na direção do autoconhecimento.
Todo e cada passo destinado ao nosso próprio cume, ao nosso próprio abismo e aos nossos próprios horizontes, nos submetem sempre ao encontro reconciliador com nossa própria identidade, que necessita do reconhecimento de si para assim, quem sabe, ser capaz de afirmar com a menor margem de erros possível o “EU”.

Este “eu” como um fantasma revelado, ativo e vagante, transeunte de todas as camadas que nos compõe, capaz de se transformar, de se multiplicar e criar novos significados para cada grão de tempo que consome. É com esse fantasma, por assim dizer, que nos relacionamos nos momentos sinceros de solidão. E é também através dele que esboçamos as respostas de perguntas que não fazemos, mas que são latentes em nossa frágil condição humana.

É interessante perceber aqui que, dependendo da densidade alcançada num momento como esse, já não cabe mais o julgamento de estar ou não feliz. A felicidade em certa medida fora ultrapassada e não passa agora de uma palavra esquisita e grande demais que parece ter sido substituída delicadamente por uma sensação que inspira bem estar. Não há melhor expressão para tentar definir um estado de intensa naturalidade que “bem estar”.
A simples ideia de poder, pelo menos por alguns instantes, escapar da necessidade de demonstrar felicidades aos outros, é por si só o impulso garantidor de sincera alegria. E evidentemente de sincera tristeza. Melhor dizendo, de coisas sinceras. Desconfio que bem estar tem mais a ver com aquilo que se é capaz de sentir sinceramente do que aquilo que se é capaz de fingir sinceramente. E isso não necessariamente deve estar ligado a algum acontecimento externo, mas sim ao que foi tocado dentro de si. A questão então passa por uma sutil constatação de que o bem e o mal estar do momento solitário podem depender de como reagimos ao olhar dos outros. Presos à necessidade de atender expectativas alheias, nos privamos essencialmente de atender às nossas próprias


Muitos de nós mergulhamos de cabeça num mar de gente para tentar encontrar a nós mesmos em outros rostos, enxergar a nós mesmos em outros pensamentos, ouvir a nós mesmos em outras vozes, sentir a nós mesmos em outros sentimentos...
Embora isso não seja absolutamente condenável, não deve ser entendido como um “antídoto” contra a solidão, pois em grande dosagem é provável que ofereça sérios efeitos colaterais contra a alma.
Ademais, estar entre muitas pessoas não oferece nenhuma garantia da fuga do sentimento de solidão.
Numa boa conversa com uma amiga certa vez, ela disse pensativa que não tinha medo de estar sozinha, mas sim de se sentir só. Justo!
Existem consideráveis diferenças entre esses dois estados da solidão: O “Estar só” sugere uma ausência momentânea de pessoas. O “Sentir-se só” indica uma falta permanente de nós mesmos. E isso não tem muito a ver com a quantidade de estímulos a que somos submetidos na agitação do dia-a-dia, mas sim com a nossa capacidade de lidar com eles.
Em outras palavras, isso não tem a ver com quantas pessoas somos capazes de conversar ao mesmo tempo pelo whatsapp ou à quantidade de likes que uma selfie pode alcançar, mas com o que a necessidade disso significa. Tem a ver com o que sobra de nós quando perdemos o sinal de internet e as milhares de pessoas presas nas nossas redes desaparecem. Tem a ver com o que sentimos quando nos damos conta de como são frágeis e ineficazes as soluções que encontramos para nos afastar do medo de parecermos sós.

De certa forma, o temor à solidão denota nosso medo diante do abandono, do esquecimento e expõe nossa fragilidade diante das nossas próprias interpretações sobre o mundo.


Nosso pavor à solidão, em certa medida, é o nosso medo de fracassar em cativar e manter o sincero amor daqueles que se dispuseram a partilhar conosco momentos de vida, independente das distâncias ou circunstâncias. A solidão que nos aterroriza é aquela que nos aproxima da ideia de uma morte causada por um suicídio inconsciente lento e doloroso, resultado de uma incompetência estrutural por não dedicarmos suficientes esforços para aprender a lidar com nossos próprios fantasmas e fantasmas alheios.
A solidão que tememos é aquela que explora nossa culpa por compreender que muitas de nossas dores são os efeitos irrefutáveis das ações que nos tornam responsáveis pela maior parte da angústia que sentimos quando estamos sós.

Em última análise, tememos a compreensão de que a solidão não nos torna pessoas mais tristes ou alegres, mas apenas acentua e intensifica aquilo que já habita em nós. E se nossa solidão já não se sente mais à vontade apenas com aquilo que somos capazes de lhe oferecer, é certo que ela é quem deveria nos temer.

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