Por Joe Cruz
(Parte 1)
Em 1979, numa entrevista
ao programa Vox Populi da TV Cultura, quando perguntado o motivo de temer a
solidão, Chico Buarque então com pouco mais de trinta anos, responde reflexivo,
com o típico olhar trágico de quem compreende o peso por trás da obviedade da
resposta e dispara sem titubear: “-
Porque solidão tem a ver com a morte...” Depois de sua sentença, a sala
parece ter sido tomada por um silêncio frio, desconfortável, como se aquela
constatação merecesse algum tempo para o devido processamento.
Chico não revela nenhuma
nova consciência arrebatadora. Não há em sua resposta rápida e objetiva nenhum juízo
que, de alguma forma, já não intuamos. No entanto, é inevitável que sintamos o
calafrio provocado pela naturalidade da coisa.
Pensar em solidão não é lá
das atividades mais agradáveis que se pretenda investir tempo. Mas é provável
que a maioria de nós (mesmo que sem querer) já tenha se deparado com a ideia de
um possível deslocamento do meio social para um isolamento individual e
particular. E é também provável que nesta situação tenhamos sido levados a
lidar com o esforço em explorar alguma definição para a palavra solidão. Óbvio que a palavra não trás nela mesma nenhum
significado surpreendente, além da incrível versatilidade para rimas! Porém
sugere em seus possíveis sentidos, noções de temperamentos que geralmente estão
relacionados a uma interpretação negativa
do mundo como a depressão, o pessimismo ou a melancolia. E neste caso, o
Chico com sua resposta vai ao extremo da aflição angustiante que nos aterroriza
diante da ideia de solidão: a morte em
vida.
Mas é claro, isso não
precisa ser pensado dessa forma. E a meu ver, nem deve.
Se por um lado somos
acometidos pelo temor da constatação de que a solidão tem alguma coisa a ver
com a morte, por outro pode ser bem encorajador o efeito causado pela
compreensão de que ela também tem (muito) a ver com a vida em seu sentido mais
amplo. E aqui é importante que fujamos daquele papo do “copo meio cheio ou meio vazio”. A questão também deve tentar
escapar do “bem ou mal”.
Em questões deste calão, é
necessário estar além das clássicas dicotomias. Existe aqui um necessário “ser e não ser”, um “bem e mal”...
Os efeitos mais
verdadeiros que se tem à luz da solidão estão justamente entre as percepções que se pode ter sobre vida e morte. E, portanto
as duas interpretações estão necessária e intimamente ligadas durante o
aprofundamento dos sentimentos que envolvem o momento solitário. Aqui, as duas
pretendem dançar uma mesma música como um par que almeja a sincronia perfeita
entre seus movimentos para criar assim um ritmo peculiar e de rara beleza
natural.
A solidão deve se
distanciar do julgamento de ser ou não produtiva,
mas sim tentar se aproximar ao máximo do entendimento de que se trata de um espaço vazio que será preenchido com
aquilo que melhor nos traduz e assim
promover o valor e a qualidade que lhe cabe.
É dessa forma que as
atividades que mais nos agradam quando estamos sós, revelam mais sobre nossa
essência do que aquelas que são ditadas por grupos de pessoas ou pelo
automatismo da rotina, pois se derivam exclusivamente de nossas escolhas sem influências
ou interferências externas.
A leitura concentrada de
um bom livro, a audição atenta de uma música, o deleite no desenvolver de uma
escrita, por exemplo, demonstra a natureza introspectiva de uma pessoa que
poderá descobrir grande valor em seus momentos de solidão.
Por outro lado, a
facilidade para entretenimento de fácil envolvimento como por programas de
televisão ou distrações simples, pode demonstrar a natureza leviana de uma
pessoa que entende que o espaço vazio proposto pela solidão deve ser preenchido
pela passagem rápida do tempo, de forma que o esquive do tédio.
Em nenhuma das situações é
possível afirmar o caráter positivo ou
negativo do momento.
No entanto, ainda assim, é
possível ao menos qualificar o
momento e identificar quais virtudes podem fazer dele uma oportunidade de
elevação individual através de suas possibilidades de aprofundamento, de modo a
permitir que o encontro com a solidão inspire a intimidade necessária para o
florescer daquilo que vive somente em nós, em cantos de difícil acesso da nossa
personalidade, em locais escuros e escondidos de nossa consciência.
Neste sentido, é quando a
solidão pode indicar direções para o processo criativo; é quando o contato com
as artes e o nosso próprio entendimento sobre elas podem encontrar a sintonia
necessária para o desenvolvimento tanto para a apreciação quanto para a produção
artística.
A intensidade do momento
ficará somente a mercê da quantidade de verdade que somos capazes de investir
nele. E este investimento por sua vez dependerá unicamente da coragem que
dispomos para encará-lo.
Coragem para encontrar a
si mesmo em seu estado mais cru, afirmando a cada segundo a autonomia de toda a
subjetividade que envolve o momento, expondo com nitidez toda a nudez com a
forma que lhe é própria diante apenas dos próprios olhos, vulnerável ao
desconforto e ao frio até que se possa aos
poucos aquecer a si mesmo e assim aconchegar-se no seu próprio ser, independente do que isso significa,
independente no que isso possa resultar ou revelar.
Este “aos poucos” não acontece se não for através da música que embala a dança ritmada pelos
movimentos de intimidade entre a vida e a morte, entre o bem e o mal... E aqui
talvez seja possível questionar que em momentos assim, não se sabe ao certo se
o que se teme é a morte ou a vida, ou as duas coisas juntas.
Neste movimento é possível
também imaginar o temível abismo diante de uma alta montanha que somente poderá
ser encarado por aqueles que são capazes de subir até o cume.
A corajosa, cansativa e
solitária caminhada até o cume certamente nos faz compreender o quão assustador
pode ser a proximidade com o abismo. No entanto, simultaneamente, nos apresenta
o quão transformadora pode ser a experiência diante da vastidão frente aos horizontes
que se pode enxergar do alto.
Me parece que aqui todo o
movimento que se empreende são esforços na direção do autoconhecimento.
Todo e cada passo
destinado ao nosso próprio cume, ao nosso próprio abismo e aos nossos próprios
horizontes, nos submetem sempre ao encontro reconciliador com nossa própria
identidade, que necessita do reconhecimento de si para assim, quem sabe, ser
capaz de afirmar com a menor margem de erros possível o “EU”.
Este “eu” como um fantasma revelado, ativo e vagante, transeunte de
todas as camadas que nos compõe, capaz de se transformar, de se multiplicar e
criar novos significados para cada grão de tempo que consome. É com esse
fantasma, por assim dizer, que nos relacionamos nos momentos sinceros de solidão.
E é também através dele que esboçamos as respostas de perguntas que não
fazemos, mas que são latentes em nossa frágil condição humana.
É interessante perceber
aqui que, dependendo da densidade alcançada num momento como esse, já não cabe mais
o julgamento de estar ou não feliz. A felicidade em certa medida fora
ultrapassada e não passa agora de uma palavra esquisita e grande demais que
parece ter sido substituída delicadamente por uma sensação que inspira bem estar. Não há melhor expressão para
tentar definir um estado de intensa naturalidade que “bem estar”.
A simples ideia de poder,
pelo menos por alguns instantes, escapar da necessidade de demonstrar
felicidades aos outros, é por si só o impulso garantidor de sincera alegria. E
evidentemente de sincera tristeza. Melhor dizendo, de coisas sinceras. Desconfio
que bem estar tem mais a ver com
aquilo que se é capaz de sentir sinceramente do que aquilo que se é capaz de
fingir sinceramente. E isso não necessariamente deve estar ligado a algum acontecimento
externo, mas sim ao que foi tocado dentro de si. A questão então passa por uma
sutil constatação de que o bem e o mal
estar do momento solitário podem depender de como reagimos ao olhar dos
outros. Presos à necessidade de atender expectativas alheias, nos privamos
essencialmente de atender às nossas próprias
Muitos de nós mergulhamos
de cabeça num mar de gente para tentar encontrar a nós mesmos em outros rostos,
enxergar a nós mesmos em outros pensamentos, ouvir a nós mesmos em outras
vozes, sentir a nós mesmos em outros sentimentos...
Embora isso não seja
absolutamente condenável, não deve ser entendido como um “antídoto” contra a solidão, pois em grande dosagem é provável que
ofereça sérios efeitos colaterais contra a alma.
Ademais, estar entre muitas
pessoas não oferece nenhuma garantia da fuga do sentimento de solidão.
Numa boa conversa com uma
amiga certa vez, ela disse pensativa que não
tinha medo de estar sozinha, mas sim de se sentir só. Justo!
Existem consideráveis
diferenças entre esses dois estados da solidão: O “Estar só” sugere uma ausência momentânea de pessoas. O “Sentir-se só” indica uma falta
permanente de nós mesmos. E isso não tem muito a ver com a quantidade de
estímulos a que somos submetidos na agitação do dia-a-dia, mas sim com a nossa
capacidade de lidar com eles.
Em outras palavras, isso
não tem a ver com quantas pessoas somos capazes de conversar ao mesmo tempo
pelo whatsapp ou à quantidade de likes que uma selfie pode alcançar, mas com o que a necessidade disso significa.
Tem a ver com o que sobra de nós quando perdemos o sinal de internet e as
milhares de pessoas presas nas nossas redes desaparecem. Tem a ver com o que
sentimos quando nos damos conta de como são frágeis e ineficazes as soluções
que encontramos para nos afastar do medo de parecermos sós.
De certa forma, o temor à
solidão denota nosso medo diante do abandono, do esquecimento e expõe nossa fragilidade
diante das nossas próprias interpretações sobre o mundo.
Nosso pavor à solidão, em
certa medida, é o nosso medo de fracassar em cativar e manter o sincero amor
daqueles que se dispuseram a partilhar conosco momentos de vida, independente
das distâncias ou circunstâncias. A solidão que nos aterroriza é aquela que nos
aproxima da ideia de uma morte causada por um suicídio inconsciente lento e doloroso,
resultado de uma incompetência estrutural por não dedicarmos suficientes esforços
para aprender a lidar com nossos próprios fantasmas e fantasmas alheios.
A solidão que tememos é
aquela que explora nossa culpa por compreender que muitas de nossas dores são
os efeitos irrefutáveis das ações que nos tornam responsáveis pela maior parte
da angústia que sentimos quando estamos sós.
Em última análise, tememos
a compreensão de que a solidão não nos torna pessoas mais tristes ou alegres,
mas apenas acentua e intensifica aquilo que já habita em nós. E se nossa solidão
já não se sente mais à vontade apenas com aquilo que somos capazes de lhe
oferecer, é certo que ela é quem deveria nos temer.
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