Por Joe Cruz
Certa vez, numa conversa à
toa com um amigo na casa dele, tive um desses raros momentos de sincera e
prazerosa atenção que poucas conversas à
toa merecem. Isso talvez aconteça quando uma conversa não tem nenhuma pretensão
de ser interessante ou inteligente ou qualquer coisa do tipo. Pode ser, não
sei. O que sei é que diante de uma parede
branca, meu amigo, aliás, um grande e velho amigo, manda um desses
comentários soltos que te pega desprevenido, sem aberturas para complementos ou
refutações. O tal comentário se referia à parede
branca a nossa frente: “Tudo o que preciso às vezes é dessa parede
branca”. – Disse... – “Posso encará-la por horas...” – Pra
que? – “Pra nada. Pra não pensar em nada, não fazer nada. Só isso mesmo, ficar
aqui sentando de frente para a parede branca”.
Sabe-se lá o motivo do
cara proferir um juízo desses no meio de uma conversa. Eu poderia imaginar que
deveria deixa-lo a sós com a parede branca, mas ao invés disso achei que
pudesse talvez partilhar da mesma experiência que ele. Me coloquei então de
frente para a tal parede e encarei aquele angustiante vazio branco, que
agravava sua brancura a olhos vistos por conta da luz dos últimos raios de sol
do entardecer. Insustentável. Após um curto período (bem curto), achei por bem
interromper aquele silêncio sufocante... .
Recordei ali, com certa nostalgia quando meus irmãos e eu disputávamos quem
seria capaz de ficar mais tempo com a cabeça mergulhada num balde com água. “Posso
encará-la por horas...” Ele
havia dito pouco antes. – Como?! – Passei a respeitá-lo ainda mais.
Melhor é mandar vir outra cerveja! E voltamos então à nossa deliciosa conversa sobre
nada.
Depois daquilo não olhei
mais uma parede branca com os mesmos olhos.
A questão aqui é buscar
compreender o que de fato representa a tal parede.
É certo que para cada
pessoa existirá naturalmente diferentes construções de significados de acordo
com experiências, personalidade, etc tal, mas de maneira geral é possível dizer
que a passividade de uma parede branca nos causa, num primeiro momento, o
efeito angustiante da constatação de nossa subordinação ao tempo, acompanhado pelo
sentimento da necessidade de preenchimento de espaços vazios, sobretudo aqueles
que pretendem ser preenchidos com aquilo que somos capazes de produzir em nós
mesmos. E nem sempre o que é produzido em nós mesmos é suficiente para ocupar certas
lacunas.
A sensação então é de um
estranho mal estar sem nome nem
lugar, um “sei lá o quê”
desconfortável, desagradável justamente porque nos aproxima de um abismo que
desconhecemos a profundidade.
Se por um lado o tempo parece
querer nos apequenar nos espremendo em horas, minutos e segundos de rotinas de
trabalho, por outro nos agiganta quando parece querer deixar-se seduzir por
nossas vontades, nos permitindo escolher entre isto ou aquilo, tudo ou nada...
Se você é desses que tem
ponteiros tic-taqueando dentro de si
como um relógio que se ajusta automaticamente pela rotina, provavelmente sabe
qual é a sensação de lidar de repente com um tempo permissivo, que te deixa
desconcertantemente à vontade com as próprias escolhas, a sós com a própria
consciência, cara a cara com você mesmo. Daí a angústia de ser livre já problematizada pelo filósofo francês Jean Paul Sartre.
Em Sartre fica fácil
compreender o pepino que é estar diante da responsabilidade da escolha, já que
tal ação afirma o valor daquilo que se escolhe e, portanto configura o valor do
próprio indivíduo. Assim, ser livre para escolher de que forma gastar o tempo
da própria vida não deixa de ser a responsabilidade da construção de si através
da consciência de existir e do compromisso de conferir sentido à própria
existência.
O menu do Netflix é um bom
exemplo de como pode ser angustiante ser livre para escolher!
Vivemos tempos do “Tudo e Nada”. Queremos tudo e ao mesmo
tempo, e rápido. Tempos da dinâmica e da multiplicidade. Tempos da não perda de tempo e do desgaste das
experiências. Este é o tempo dos infinitos estímulos e dos irresistíveis
atrativos; tempos das cores vivas, da música alta, do trabalho insano, do
acúmulo de informações, de paixões verdes e amores frágeis, das múltiplas
sensações, das opiniões formadas... Tempos da uniformização das variedades.
Neste cenário, obviamente
a parede branca do meu amigo é a
representação do tédio, quase uma afronta aos bons costumes contemporâneos! E
não é de se entranhar que sintamos náuseas ou falta de ar se virmos alguém de
mente sã e corpo saudável neste estado de tão convicta inação, de frente para o
vazio querendo dele apenas a ausência de estímulos externos para assim, quem
sabe, acessar involuntariamente seu próprio conteúdo enquanto ser para si
mesmo. O ócio sem objetivos de criação, reflexão ou preguiça, mas sim e
simplesmente para nada. E o nada como
escolha, como saída.
A escolha pelo tempo para
o nada, neste sentido, se confunde com desperdício da vida útil e uma vida
inútil dentro do âmbito social, se confunde com a morte. Convenhamos, ninguém
está a fim de parecer morto, mas a morte e o nada em nossa cultura, andam muito
próximos. Talvez por isso pretendemos, à qualquer custo, agregar cada vez mais
ação, pessoas e quinquilharias à nossa vida para que nossos dias pareçam mais
ricos e carregados de sentido, ou para que afastemos para bem longe a sensação
de não sermos capazes de saborear o melhor da vida, mesmo sem saber direito
o que isso queira dizer.
Não à toa, queremos
enjaular nossos momentos de felicidades em fotos desesperadas como se
quiséssemos (na melhor das hipóteses) provar para nós mesmos que somos ativos,
saudáveis e dispostos a viver ao máximo o melhor tempo possível.
Bom, diante de toda pressa
e pressão a que nos submetemos diariamente, diante de toda a confusão de coisas que engolimos
e que nos engole, é bom que tenhamos algo branco (parede, papel, sabão de coco,
copo de leite...) onde caiba nossa impressão, que suporte nossos rabiscos e
angústias. É bom que tenhamos um silêncio branco que nos ouve e uma candura voz
que não fala.
E... que possamos, um dia, esquecer acerca da inquietação dos lápis, das canetas e pincéis, como também, não nos lembrar da urgência dos bicos de pena e “sprays”. E, então, repousá-los a todos por sobre as mesas da vaidade... para que as paredes e papéis em branco, enfim, possam falar... Falar sobre si, quem sabe, nos sussurrar, no durar impreciso de uma conversa, que seu brancor reúne todas as cores!!!
ResponderExcluirÓtimo texto, Joe! Sensível e reflexivo!!!